CONTO
Sentada sobre tronco de velho castanheiro, uma mulher meditava. A tarde amena daquele outono tinha no cheiro a húmus todas as tonalidades da estação adiantada. Cogumelos de várias espécies davam ao chão a graça, o colorido de estampas antigas.
Brilhava-lhe o gosto contemplativo no olhar, mas na expressão, havia uma contrariedade que o aspecto grave da postura confirmava. Que contraste se adivinhava entre a observação da floresta e seu mundo interior.
Na quietude da floresta deixou escapar uma frase:
_como é difícil ser poeta!
Lembrou o poema de Florbela Espanca, ser poeta é ser maior...
Maior, mas maior que quê?
Maior, que a dimensão humana? talvez.
Porque havia de ser maior o poeta, que tudo o que o gerou. O ser humano atravessou a história milenar, seus sobressaltos e incertezas... que pode haver de maior que essa realidade. Talvez o sonho, o sonho humano seja maior. E quem se eleva mais no sonho que o poeta? Será isso ser maior? poderemos medir-nos com nossos sonhos, que eles sim são livres. Nossas peias humanas permitem-nos por acaso liberdade? Pobres rimadores à procura de sentido. De novo sua voz se fez ouvir:
_como é difícil ser poeta! Mas onde está afinal a dificuldade em sermos o que somos. Ser poeta, fazedor de rimas, ajuntador de palavras, à procura de sentido! Se ao menos ser poeta fosse assim simples, não teria por dentro aquela pontada aguda a exprimir o doloroso contrário: estar na posse de sentido à procura de palavras.
E se ainda ao menos fosse só isso. Mas não, ainda era preciso não desmerecer e sentido e palavras.
Na altura dos ramos aves cantavam.
_Que sorte vocês têm! Nascem, trazem o cantar por destino, sem metafísica alguma, sai-vos certinho o canto determinado desde avôs, nenhuma nota houve a mudar, vossas incansáveis harmonias perfumam-nos os ares infatigavelmente. Regras naturais que sempre encantam sem trazer reflexo de dúvida e angústia. Isto de nascer com consciência, sempre tem que se lhe diga.
A harmonia do poeta tem que começar por dentro, ou terá sido por acaso que o Rimbaud tenha deixado de escrever versos e se tenha tornado traficante de armas. Poeta nunca o poderia ter feito. Para passar ao estado mercantil, despiu a poesia de que estava vestido por dentro. Dinheiro e poesia nada têm em comum.
_Pobre homem pensou, depois do despudor da poesia, despir a alma de poeta.
E dizem que os poetas não passam de uns loucos, de líricos. Falam por falar, nada sabem do rigor a que a poesia impele.
Senão, ser poeta seria fácil. Dizem que se nasce poeta.
Como falariam de qualquer deficiência. Mas para que expontâneos versos brotem, é preciso que a idealidade conduza o poeta pela mão, alma de criança, dotada visão a
agudizar-se sempre.
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O voo raso das gaivotas levara-a até à praia. Sentada sobre uma rocha, dessas muitas que por ali o mar salgava, ficou de olhar perdido, a fitar o azul que no longe parecia mergulhar nas águas de Setembro. O Verão prolongava-se nas tonalidades de oiro do dia nascente. Que bela manhã... sussurrava-lhe voz interior! Que perfume intenso de vida chega desde o mar.
As ondas espraiavam enormes montanhas de espuma, testemunho decerto de mar de fora, já que, no tom presente nada deixava pressentir esse início de fúria.
Se a alegria de viver tivesse vulto seria decerto aquele! Sentia-se transportada a ideais de beleza e altura. Que forte, generosidade era a vida, e como essa força lhe sabia bem. Milhares de projectos lhe ocorriam, tanto havia pra fazer! Sentia mundos de promessas activas a tomar forma dentro de si.
Os olhos continuavam a fitar o vago onde tantas formas surgiam.
Aos poucos as ondas foram-se tornando maiores, cada vez mais fortes, mais bravas, sempre sinais da vida intensa, de que o mar era detentor.
Uma vaga rolou, montanha sobre a praia, a desfazer-se naquela imensa espuma de luar.
Ali no meio do areal, quando a água se retirou, adormecido, encontrava-se o corpo magnífico de um homem.
Teve um sobressalto:
_ estaria morto?
Aproximou-se, olhos pregados no rosto de estranha serenidade.
Belo como oceano, o homem olhou-a.
Saber se de tanto ter fixado as vagas lhe via no olhar, espraiar de lágrimas ou ondas, a imensidade.
Não mais parou de fitá-lo. O olhar do desconhecido colava-se no seu, não a largava.
De súbito sem desviar os olhos dos dela, perguntou:
_vamos?
Juntos aproximaram-se da beira-mar.
Não soube interpretar o que sentia. Fusão, ou dádiva,b... entraram na água.
Na praia ondas rolavam sempre. Mar de espuma, berço da vida!
Sobre a praia deserta, ondas ou montanhas de água caiam com fragor.
No ar de Setembro voavam gaivotas.
Marília Gonçalves
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