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invisível incómodo |
Retrato da Rua
Morre um milionário
E o jornais vêm entupidos de notícias
Enquanto os mortos vivos
Pelas ruas
Tiritam o frio que ninguém vê
Uma fome tão densa
Tão brutal
Os corrói lentamente
Mas hoje é tão banal
Morrer de fome
Como morrer de frio e solidão
Até parece que nem há trigo ou pão.
Mas à porta de cada padaria
Há um perfume intenso
E neste caso
É de pequeno vulto quanto penso...
Mas se um pobre faminto
Passar ali ao pé
Mesmo defronte
Do perfume do pão
Incandescente
O que pensa o que sente
É que me importa!
Como calar a fome
Quando o pão
Ali ao pé da mão e do olhar
O desafia e chama
E com a mesma fome o mesmo frio
Vai deitar-se no chão
de pedra e de papel
A desumana cama
Que não lhe aquece
O estremecer da pele.
Mas isso os jornais não noticiam
Ou uma vez por outra
Para ter boa consciência
Ou se caso mortal deu que falar
Por desusado
Mas quanto à fome e à miséria...
Os jornalistas andam noutro lado.
Marília Gonçalves