Ao cofre onde guardo a história
vou buscar os meus poemas.
Esse cofre é a memória
da alegria das penas
que encontrei no meu caminho.
Vêm desde a minha infância
profundas a acenar
e deram-me asas de sonho
para delas me afastar.
Marília Gonçalves
Ao cofre onde guardo a história
vou buscar os meus poemas.
Esse cofre é a memória
da alegria das penas
que encontrei no meu caminho.
Vêm desde a minha infância
profundas a acenar
e deram-me asas de sonho
para delas me afastar.
Marília Gonçalves
bom dia meu amor
é primavera
nascem em maio
as flores
ao teu sonhar
caem estrelas a rir
cantam as águas
é doce o teu olhar
quem viu ser vindimada
a primavera mas eu sei o licor
e os teus lábios
é maio e nasceu uma outra era
na inocência de teus gestos sábios.
Marília
Gonçalves
Consequência
Apunhalei a noite nos meus olhos
cravei os dedos na manhã sem escolhos
escutei o tempo a cantar
os silêncios que rasguei
e parei
para escutar.
Marília Gonçalves
LISBOA
Lisboa tem olhos verdes
que incolor pássaro trouxe
das arestas da poeira
descobertas no instante.
Os olhos escureceram
depois tornaram-se azuis
de vozes que nós fiaram
entre poemas perdidos.
O som distante do cravo
entreaberta janela
onde se imprimem as pautas
de palavras que se perdem.
é no traço retilíneo
de inventar gestos de fumo
que os olhos tornam-se verdes
a neutralizar o rumo.
Esboço ténue da ideia
onde a palavra perverte
o fundo que nela ondeia
no vertical da maré.
Há olhares que dissimulam
harpejo esférica estrela
mas dentro dela procuram
a circular forma branca.
Lisboa tem olhos verdes
numa ode giratória
afunda-se sol azul
a perfilar a memória.
Mas quando a sombra descai
na cidade que é mulher
há o grito lancinante
duma criança a nascer.
Marília Gonçalves
Rastejo na tua pele
luz de febre
voz de mar
e sinto sede do teu olhar.
Alegra-se a noite
há magia, encantos e perfume
enquanto procuro a tua mão
nos meus lábios de lume.
Marília Gonçalves
HE
O Sonho do cão cativo Que sonha o cão na manhã de maio que sonha triste de alegre viver que sonha o cão quando a companhia da voz amiga já não torna ser. Que sonha o cão quando atrás de grades contempla o céu ainda tão azul que sonha o cão se desenha os ares a ave loira dos campos do sul Que sonha o cão quando a água clara sabe à prisão que não deixa mais que sonha o cão se a manhã aclara ou quando à noite se acende o trovão Que sonha o cão quando ouve inda festas na melodia do sonhar perdido que sonha o cão se pelas florestas vagueia o lobo livre perseguido que sonha o cão quando a mão que afaga o larga vil, num pobre caminho que sonha o cão a correr a estrada cheirando o ar do velho carinho Que sonha o cão quando as aves cantam a solidão do jardim florido que sonha o cão se os olhos se espantam a relembrar o tempo perdido Que sonha o cão quando a voz que soa traz à lembrança o seu velho afago ah como a vida era meiga e boa quando brincava nas margens dum lago Que sonha o cão quando o mar exalta as mil viagens que não mais fará que sonha o cão quando o medo assalta pela família que não mais verá Que sonha o cão quando a hora chega de repetir o sabor do pão que sonha ao cão que desassossega o seu olhar ao ver uma mão Que sonha o cão quando tristemente os dias caem sobre sua voz olhando o longe onde antigamente era cachorro chamando por nós Que sonha o cão quando só pressente a solidão para além do dia que sonha o cão, com o dono ausente aquele dono por quem morreria! Marília Gonçalves
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