
O valor duma diferença
tem tido o preço da paz
por cada um ver ofensa
em tudo o que o outro faz.
Só por desconhecimento
tanta vida se perdeu!
Tanta dor e sofrimento
tanta lágrima correu!
O verdadeiro caminho
que leva à fraternidade
é vermos cada vizinho
igual em dignidade.
Quando a distancia é maior
vencer a ignorância
será olharmos melhor
sem medo nem relutância.
Ver na cultura diferente
um direito a respeitar
deitando à terá a semente
que breve irá germinar.
Uma árvore de amor
de terna compreensão
fará o mundo melhor
- os povos de mão na mão.
Mas se a força persistir
cruel d’obscurantismo
nosso mundo irá ruir
no maior cataclismo.
Marília Gonçalves
A porta bateu? Ou bateram à porta? Quando a porta bate é porque há corrente de ar. E quando batem à porta qual é a ideia corrente? São ladrões. Não de portas. E nem os ladrões batem à porta nem as portas batem nos ladrões. E a porta tem corrente. Mas não corre, porque se corresse a porta não era porta, era corredor. E o corredor nunca fica à porta. Entra sempre.
Ou sai. Mas quando sai, sai a correr. Quando entra, não. Entra só corredor e nós às vezes é que corremos para entrar. E Saímos pela porta que bate antes antes dela bater porque senão pode bater-nos a nós. E ficávamos sem a voz com o susto. Porque se ficássemos com o susto e com a voz não se diria de nós que foi a porta que nos bateu por causa da corrente de ar. Podia dizer-se que o ar nos deu e fomos bater à porta.;
A porta bateu? Ou bateram à porta? A culpa foi do ar que não faltou. Se o ar faltasse não havia corrente e o corredor não saia a correr nem entrava a porta porque lhe faltava o ar.
Assim a culpa é do ar se a porta não bateu nos ladrões que não bateram à porta. Entao porque diabo é que a porta bateu?
Marília Gonçalves
Olhos de trigo a voar
sobre a miséria e a fome
sem saberem germinar
entre as mãos de quem não come
espanto de sonhar o pão
ou ser leite maternal
transformar-se em coração
num mundo sem ideal!
sonho de trigo, campina
futura seara ao vento
pr'a levantar mais acima
o amor e o pensamento.
Marília
Vem da memória do tempo
o gesto do meu dizer
e cai ao bafo do vento
a certeza do meu ser
vem da distância perdida
o olhar que espanto tem
dentro em mim trago perdida
história que da história vem.
Marília
Nas mãos que trabalham
há mil gestos que se repetem
e continuamente
vão transformar o mundo
na forma desconhecida
experimental
Marília
Menino da Beira Mar
Menino da beira-mar
de búzio na mão estendida
que mundos no teu olhar
que luz, que sombra, que vida.
Chegas o búzio ao ouvido
atento escutas o mar
menino de olhar perdido
estás vivo, sabes sonhar.
Caminhando pela praia
ágil em total nudez
levas a cabeça cheia
de contos. Era uma vez...
Menino da beira-mar
partilha o búzio comigo
vamos lutar contra a mágoas
meu menino, meu amigo.
Marília
Numa lágrima aprofundo
os teus olhos e o mundo
há na lágrima infantil
uma sonda universal:
ver chuva no céu de anil
não é decerto normal
quando a lágrima reflete
mais do que o passo aprendido
e que a criança repete
mesmo que tenha caído
Quando há o mar infinito
que atravessou tantos sóis
que os olhos dum pequenito
trinam mortos rouxinois
Ah! Então ó maravilha
deste vil deslumbramento
na lágrima minha filha
desagua o pensamento
Marília
Grita
a escuridão
que trazes dentro de ti
grita
os cálidos dias que não voltam
os pássaros emudecidos que não cantam
as fontes entorpecidas que não correm
as manhãs adormecidas que não nascem
as noites que habitam o teu espanto
os silêncios que te calam a dor
Grita! Grita! Grita:
por esse so que em ti se está a pôr....
Grita o grito mudo dos dias que não correm
e escuta o eco do silêncio:
os pardais cantam indiferentes
ao teu sofrimento sem luar...
as fontes gorjeiam sóis a saltitar
as noites tropeçam nas estrelas
o eco não captou a tua dor!?
Na estagnação do insuportável
tudo continua à tua volta
Marília
Provemos aos mortos que não os traímos
devolvendo aos vivos a terra dos vivos.
Sidónio Muralha
O assobio do comboio
o assobio da menina
o assobio da cafeteira
o assobio do ardina
o assobio do vendaval
o assobio da serpente
o assobio de quem passa
na angustia que há na gente.
Marília
A porta bateu? Ou bateram à porta? Quando a porta bate é porque há corrente de ar. E quando batem à porta qual é a ideia corrente? São ladrões. Não de portas. E nem os ladrões batem à porta nem as portas batem nos ladrões. E a porta tem corrente. Mas não corre, porque se corresse a porta não era porta, era corredor. E o corredor nunca fica à porta. Entra sempre.
Ou sai. Mas quando sai, sai a correr. Quando entra, não. Entra só corredor e nós às vezes é que corremos para entrar. E Saímos pela porta que bate antes antes dela bater porque senão pode bater-nos a nós. E ficávamos sem a voz com o susto. Porque se ficássemos com o susto e com a voz não se diria de nós que foi a porta que nos bateu por causa da corrente de ar. Podia dizer-se que o ar nos deu e fomos bater à porta.;
A porta bateu? Ou bateram à porta? A culpa foi do ar que não faltou. Se o ar faltasse não havia corrente e o corredor não saia a correr nem entrava a porta porque lhe faltava o ar.
Assim a culpa é do ar se a porta não bateu nos ladrões que não bateram à porta. Entao porque diabo é que a porta bateu?
Marília
A cal esqueceu o azul
e a folha emurcheceu
o norte abraçou o sul
choveu.
Irisou-se a pedra informe
ou dividiu-se ou cresceu
a transformar esta fome
no ser dúbio que sou eu.
Marília
A dor não é colorida
não tem peso não tem voz
por isso não há medida
pró que trazemos em nós
Marília
o lume é que dá à treva
pétalas a florescer
lágrimas azuis que tecem
os meus braços de mulher
Marília
vindo do tempo
dos templos
do alabastro
amadis
alagou
de branco véu
o álamo
onde a alba
aleava
encantos
tantos
que o enluarado
damo
de dardo
sanguinolento
na anémona sombria
entoa sons de alude
num sobressalto de adaga.
Ó amadis
quem te diz
que é raiz
o dardo teu?
semente ou lume
ou navio
alado será o rio
do teu desejo amadis
será o dardo o alento
no teu dúbio movimento
mas não fará o que diz
A Poesia como
Necessidade Interior Revelações da poetisa
Marília Gonçalves
Declarações recolhidas por D. Lacerda
Marília Gonçalves é uma das vozes poéticas mais vibran tes e puras que conhecemos
entre os portugueses de França.
Achando-se desde muito jovem, por relações de família,
envolvida na luta pela emancipação das camadas sociais desprotegidas,
os seus versos são portadores de rebeldia e de anseio de justiça.
O seu espírito solidário e universalista envolvem-na nos movimentos colectivos
e emprestam à sua poesia um forte élan expansivo e comu nicante que nos empolga,
“entrando em nós luminosa e potente”, como diz a poetisa.
Registamos aqui algumas das suas vivências e impressões que ajudarão
a melhor desenhar o seu universo poético.
Latitudes — Quando começou a escrever poesia a sério e em que circunstâncias?
Marília Gonçalves — Engraçado, pois, na verdade, nada tenho dessa época infantil
dos primeiros versos. Aliás tudo o que escrevi, tal como tudo o que encheu minha infância
, ficou na Amadora quando vim para aqui. Viemos quando tinha catorze anos; a casa foi desfeita -
o interior entenda-se - cerca de dois anos depois e nada mais tornei a ver,
mas os primeiros versos foram escritos a respeito de meu nome, aos dez anos.
Quanto a poesia a sério, partindo do princípio que o termo quer dizer o que parece,
só muito mais tarde depois de desbravar, sentir e pensar as palavras
, isto quando o tempo começou a pertencer-me um pouco aí é que me
que me dediquei verdadeiramente a escrever.
Latitudes — Qual a finalidade de se instalar em França?
M. G.— Finalidade não sei, mas o motivo esse foi da primeira vez
em menina o fazer frente às adversida des surgidas com a prisão política de meu pai e o despedimento do
Marília Gonçalves, 2006.
n° 27 - septembre 2006LATITUDES 83
A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor! ... ... ...
A palavra! Vós roubais-la Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão. Mas qu’infâmia! Ai, velha Roma, Ai cidade de Vendoma,
Ai mundos de cem heróis, Dizei, cidades de pedra,
Onde a liberdade medra
Do porvir aos arrebóis.
Irmão da terra da América, Filhos do solo da cruz,
Erguei as frontes altivas,
Bebei torrentes de luz...
Ai! Soberba populaça,
Dos nossos velhos Catões,
Lançai um protesto, ó povo, Protesto que o mundo novo Manda aos tronos e às nações.
Castro Alves
Alento
Névoa azul
Ou céu cinzento
Veludo por inventar
Na ascensão de poetas
às estrelas a boiar.
Nuvem de sonho miragem paraíso por escrever...
A força é termos coragem
Da coragem nos doer.
Marília Gonçalves
Lisboa tem olhos verdes
Que incolor pássaro trouxe Das arestas da poeira
Descoberta no instante.
Os olhos escureceram
Depois tornaram-se azuis De vozes que nos ficaram
Entre poemas perdidos.
O som distante do cravo
Entreaberta janela
Onde se imprimem as pautas De palavras que se perdem.
emprego que dela resultou, com todas as consequências que advie ram.
Da segunda vez tinha vinte e nove anos (já dobrei esse cabo)
por moti vos de saúde de meu filho, tinha visto os médicos aqui operarem
“milagres” no que respeitava ao meu pai, e confiava plenamente
no sistema social francês e na medi cina aqui praticada.
A na transformação da sociedade, pela maneira como penetram e tocam as
sensibilidades de cada um. Vejamos este excerto de O Povo ao Poder (ver ao lado).
Latitudes — Como viveu o período salazarista?
M. G. — Vivi-o como filha e fami liar de presos políticos, num meio esclarecido
politicamente, sabendo donde vinham os golpes, com total conhecimento
dessa realidade o que me permitiu ser uma jovem equilibrada e sem malquerer outro que não fosse aos causadores do sofrimento que afligia Portugal e o seu povo, e de que os meus iam sendo vítimas, meu pai, o avô que me criou, preso vinte e quatro vezes, com tudo que daí resulta, meu tio assassinado pela Pide, o “Alex”. Minha tia tinha, seis meses antes, perdido o filho pequeno e matavam-lhe ainda o marido, o companheiro.
84 LATITUDES n° 27 - septembre 2006
Com todas as peripécias que habi taram a minha jovem vida
, e que fazem parte da história da resistên cia ao fascismo, histórias tão dolo rosas, tão complexas,
não cabe aqui, no espaço duma entrevista, desenvolver o detalhado
de tais acontecimentos que, pela sua gravi dade, merecem o maior respeito ao ser narrados.
Quando aos dezasseis anos come cei a militar no bidonville de Saint Denis
foi com espírito solidário que comecei a dar lições de francês aos desertores
que chegavam. Porque se insurgiam contra duas das formas de opressão
que mais me perse guiam e aos meus, aos amigos, aos direitos do ser humano:
o fascismo e o colonialismo. Continuava presente Castro Alves.
Mesmo na voz de outros poetas o encontrava. Nesse período do exílio de meu pai,
dizia aqui por Paris a Maldição de Jaime Cortesão. Assim aos dezassete disse também
Catarina de Vicente Campinas e quadras do António Aleixo, entre outros.
A poesia era a mais bela de todas as armas contra o mais hediondo regime.
Que matava em Portugal no solo de Portugal às ocultas, hipocritamente,
com a falsi dade peculiar do salazarismo .Que matava além-Mar os negros filhos
africanos no solo próprio e para onde eram levados os filhos de Portugal
, tão jovens, obrigados a morrer ou a matar sem bem sabe rem porquê.
Mas, voltando às repercussões do fascismo sobre a minha vida, sabe, quando
o Notícias da Amadora1 foi criado, eu estava a assistir de muito
perto à sua criação já que o seu fundador foi precisamente um desses
poetas a que me referi ante riormente. Andei mesmo pela Amadora a distribuir
prospectos sobre o lançamento do jornal em Outubro de 1958.
Talvez influen ciada por esse acontecimento, tentei com onze
anos criar um jornal no Externato onde estudava.
Nada tinha o coitado de subversivo a não ser precisamente o facto de ser jornal,
mas a autorização foi-me negada. A directora disse-me que a Mocidade Portuguesa
não aprovava a criação do dito. Penso que a direc tora nunca teria feito oposição; pois
chegou mesmo a levar um repórter da rádio à escola onde eu disse e gravei
O menino de sua Mãe de Fernando Pessoa.
Nem sempre foi fácil, foi mesmo doloroso interromper a escolari dade,
mas a vida mandava e o caminho era sobreviver e com dignidade. Por vezes as lições da vida são fonte de autoconfiança, pois o certo é que a partir daí soube que pelo trabalho se vencem obstá culos; a menina tinha uma esplên dida chave ao seu alcance. Descobri, aos catorze anos, talvez prematura mente mas de modo definitivo, o valor do trabalho e a dimensão do esforço.
Latitudes — Como encara a adap tação dos seus poemas à música,
pois sabemos que possui alguns que obtiveram sucesso?
M. G.— É verdade que, para além da poesia que escrevo por impe
riosa necessidade interior, tenho escrito também poemas-letras de canções, que
o compositor Arlindo de Carvalho musicou.
São poemas escritos por medida adaptando a forma a surgir à música presente;
comigo tem sido assim. É uma outra forma de escrever visto que parto de músicas
já compostas, para a construção do poema, pelo que devo obedecer a ritmos, métrica
, tónicas e átonas essencial mente.
Quanto a êxitos possíveis de canções devem-se ao factor miste rioso que faz que umaù
canção seja melhor aceite que outra. Para além disso há a universalidade da Lingua
gem que é a música já que todos os povos, em qualquer ponto do mundo, a podem compreender.
Latitudes — Sabemos que colabo rou nas rádio-livres e que tem dado recitais.
O que a move a esse contacto poético com o público?
M. G. — Para além da indispensá vel expressão poética, a musicali
dade da palavra dita e o grito de revolta, penso que deve ter sido
raro dizer em púbico poemas outros que esses que apelam para o despertar
da colectiva consciência. Ou que apontam uma maneira de ver e de reflectir realidades, que
É no traço rectilíneo
De inventar gestos de fumo Que os olhos tornam-se verdes A neutralizar o rumo.
Esboço ténue da ideia
Onde a palavra perverte
O fundo negro que ondeia Na vertical da maré.
Há olhares que dissimulam Harpejo esférica estrela
Mas dentro deles procuram A circular forma branca.
Lisboa tem olhos verdes
Numa ode giratória
Afunda-se sol azul
A perfilar a memória.
Mas quando a sombra descai Na cidade que é mulher
Há o grito lancinante
Duma criança a nascer.
Marília Gonçalves
Vem!...
Poeta meu irmão
do mundo inteiro
está a sombra a doer
Tu és o companheiro
de múltiplo segredo
por colher.
Poeta meu irmão
põe-te a caminho.
há uma encruzilhada...
É preciso vir devagarinho Surpreender a estrada.
Poeta meu irmão
irmão de todos
De todos os poetas
por nascer
Há à nossa volta
hirsutos lobos
Querem comer.
Poeta meu irmão
e companheiro
de horas amargas...
Vamos rasgar no nevoeiro Estradas mais largas.
Poeta meu irmão
O ser humano
n° 27 - septembre 2006 LATITUDES 85
pede passagem
Vamos num verso
a todo o pano
dar-lhe coragem.
Vem!
Poeta meu irmão
está a sombra a doer!
Caminha Companheiro
É chegada a hora de vencer. Marília Gonçalves
Quand le dernier arbre sera abattu,
La dernière rivière empoisonnée, Le dernier poisson pêché,
Alors vous découvrirez
Que l’argent ne se mange pas.”
Quando a última árvore for abatida,
A última ribeira envenenada, O último peixe pescado,
Então vocês descobrirão
Que o dinheiro não serve para comer.
Provérbio dos índios do Canadá
podem, por vezes, parecer menos evidentes a alguns de nós.
Algumas vezes esses poemas são uma homenagem a todos os que,
vencendo a sombra e a dor, fize ram de suas vidas um efectivo e elevado combate.
Latitudes — Agora, são os fóruns através da Internet. Que descober tas mais surpreendentes tem feito. M. G
.— A mais bela de todas: a de que afinal somos milhares a partil har a mesma visão,
os mesmos anseios e, graças à Internet e à proximidade que nos traz de outros
povos, esta imensa partilha, a mesma humana luta, rumo ao porvir
. O que até aqui nem sempre era possível por razões diversas,
algumas das quais materiais Hoje, num segundo, podemos dialo gar com irmãos em qualquer
ponto do mundo. No fundo, a Internet é como o vasto mundo, cada um escolhe
o caminho que lhe interessa. Os humanistas e os poetas vão a caminho do ser Humano.
Latitudes — Para quando a conti nuidade ao livro “À Procura do Traço”
que publicou faz mais de dez anos? Sei que não lhe falta poesia escrita.
M. G. — Depois disso saíram anto logias às quais estou ligada, %
Elos de Poesia, do grupo do mesmo nome, de que há um ano saiu o primeiro número estando o segundo no prelo.
E em El Verbo Descerrajado, de edição chilena, no seguimento
do combate de poetas em solidarie dade para com companheiros poetas
chilenos prisioneiros ainda do tempo de Pinochet e que esta vam em greve da fome.
Quanto a livro de minha poesia, apenas falta editora, que os p
oemas, esses, brotam de espontâ neo manancial.
Latitudes — A Marília nasceu num meio familiar muito sensível aos movimentos
sociais e cedo interveio neles. Que perspectiva nos traça nesse aspecto da nossa actualidade
e daquela que mais de perto a sensi biliza?
M. G. — A visão, chamemos-lhe assim, que hoje tenho das perspec
tivas sociais rumo ao futuro, não se afastam de modo algum da minha infantil
esperança num amanhã justo e fraterno.
Nós, seres humanos, atravessámos as mais conturbadas épocas, erguemo
nos da nossa condição primitiva, descemos das árvores e através de milénios aprendemos
fazendo colheita de cada experiência, de cada aventura, de cada sofrimento
. Hoje o ser humano alcançou um estado avançado de conhecimento,
como não confiar que essa apren dizagem não possa deixar de levar nos ainda
a maior conhecimento e compreensão. É verdade que esta mos presentemente
confrontados com a realidade ecológica que vai a curto prazo obrigar-nos
a uma escolha de sociedade. Seria um enorme desperdício
e um absurdo que a espécie humana em amplo conhecimento
se autodestruísse, sem que um impulso rumo ao futuro a leve
pelo racional caminho que a tanto esforço preparou.
Por outro lado os horizontes políti cos e religiosos atravessam as suas próprias
crises lançando muitos de nós na incredulidade e no cepti cismo.
Mas a verdade essa em que sempre acreditei é que desde sempre
os escravos se libertam, mesmo se, quais espartacos ou cristos,
nos vão crucificando no caminho.
Por isso o meu credo infinito no ser humano e na sua capacidade
de reflectir. Ante a escolha mais simples: a vida ou a morte, com
o respeito que a vida em sua origem nos merece.
E nesse respeito pela vida própria tudo se definirá política e social mente.
A Natureza e suas leis alia ram-se inevitavelmente aos que nunca tiveram
poder de decisão sobre as agressões que sofreu
E, porque a nossa inteligência vai saber afastar-nos de tão trágica conclu
, a esperança continua acesa e é sempre o caminho a escolher ●
1 Este semanário local era dos mais arrojados nos comentários e artigos que publicava, nessas décadas antes de Abril 74, tendo conquistado uma audiência nacional e muitos leitores em França.
Marília Gonçalves
Meu coração de poeta
nasceu em Lisboa um dia
numa cidade secreta
que há dentro da nostalgia.
Foi feito de largos gestos
de pais, de tios e de primos
E d’emprestados avós
onde cresceu embalado
por pregões que ainda havia
nesse tempo ignorado
que a Liberdade mordia.
Meu coração de poeta
que me deu voz muito cedo
olhos e mãos e carícias
ia soletrando medo
no meu Pais de polícias
Mas coração de poeta
tem asas e lesto voa
pra de repente cair...
Minha cidade Lisboa
poeta do meu sentir.
Calçadas, pedras e ruas
Praça do Chile, Avenidas
Arroios e seu mercado...
Desdobravam-se-te vidas
no teu chão amordaçado.
Mas Lisboa era Lisboa
um coração a nascer
descobre que ainda voa
mesmo se lhe faz doer.
Voavam jornais dobrados
pelas varandas adentro
dos meus olhos que guardavam
a poeira que em bailado
estremecia na janela
entre a luz do cortinado.
Lisboa era muito mais
era o Jardim Constantino
onde bandos de pardais
ensinavam o menino
o ardina sem jornais.
Mas ia muito mais longe
Lisboa não acabava
prolongava-se no ar...
Nas corridas das varinas
chinelas a dar a dar.
Minha Lisboa de cegos
tocadores de concertina
de carros e de morangos
ou de ciganas que às vezes
passavam a ler a sina...
Minha Lisboa poeta
nos meus olhos de menina!
M.G.
Lisboa. Heróis de Quionga...
Havia frio do Natal.
Pela mão de minha mãe
Imaginava Natais
Natais de quem não os tem.
Lisboa não tinha ali
no vento fresco da rua
a luz a decoração
do Rossio da Baixa toda;
Mas na imaginação
cada montra já perdida
dava o enlevo que então
só nos dá a própria vida.
Havia quase um calor
no frio, que sabia bem.
Porque falava de amor
mesmo àqueles que o não têm.
As prendas pobres pequenas
tinham a força do riso
a forma do coração...
Nada mais era preciso
Havendo risos e pão.
M.G.
Que saudades avózinha
dos contos que me contavas
quando eu ainda menina
nada sabia do tempo
e soltava minhas asas
entre sonho pensamento.
Na tua voz me embalavas
os contos brandos macios
na voz em que mos contavas
era entre grave, serena.
A tua mão branca fina
poisava sobre a morena
cabeleira da menina.
Sentada numa cadeira
feita por teu irmão Zé
que conhecia a maneira
de transformar de moldar
com arte sabedoria
dos que domam a canseira
a fazer de noite o dia
sentada nessa cadeira
teu conto era mais verdade
havia na brincadeira
algo de seriedade.
No agrado de meus olhos
ao sorrirem para ti
não inventavas passado
o futuro era ali.
Presa nas tuas palavras
no azul que havia em ti
brincavam as tranças loiras
que ainda tens na memória...
teu conto era a vida inteira
tua vida, minha história.
Os anos foram passando
mas vejo o mesmo sorriso
a pairar sobre meu leito...
Meu pequeno paraíso
no teu quarto branco estreito
onde havia o mais preciso.
Ainda hoje estás sentada
na mesma eterna cadeira
embalo da meninice
a minha vida primeira:
A ternura do sorriso
que voltavas para mim
transportou-me a sábio mundo
onde o sonho principia
e começa o imaginário.
A volta do tempo ido
é que me trouxe ao que sou
entre o riso ou o gemido
o meu olhar não mudou.
Vejo tua mão na minha
acariciares-me a testa.
Ó minha querida velhinha
ser menina era uma festa.
Agora mulher e mãe
a tua lembrança doce
o teu vulto ao pé de mim
constróem meu dia de hoje...
A fazer-me ser assim!
M.G.
Acima do país e da infância
de tudo quanto fui e que passou
ultrapassar do eco que é distancia
cidade a navegar no mar que sou
desenham-se fragatas no olhar
de quem partindo nunca regressou;
Lisboa a saber a mar
na sede que me ficou.
Atravesso tuas margens
meu rio minha juventude
cacilheiros e viagens
desses tempos em que pude
gravar na alma as imagens
No desferir de alaúde
fui levada na aragem
de vigor e de saúde.
Meu rio e minha cidade
o Tejo a espelhar canoa
espreita do alto o castelo…
Eu morro, ao dizer Lisboa.
Marilia Gonçalves
POEMA TEJO
Estendida ao vento
a cidade tem nos olhos
a brancura em que se agita.
Aceite no espaço azul
tem voz de rio marinheiro.
Ancorada ao oceano
Lisboa tem voz de ABRIL
a olhar para o Barreiro.
Marília Gonçalves