De todas as torturas a que fui submetido pela PIDE, a mais terrível foi a tortura do sono, que
consistia em privar o preso de dormir dias seguidos para lhe quebrar a resistência, tanto física como
moral.
NO 13º DIA DA TORTURA DO SONO
Esta manhã o Sol,
vermelho de vergonha,
veio espreitar se ainda vivo.
Sinto-me num barco que se afunda.
Só eu flutuo
à deriva num mar encapelado,
as tábuas unidas por um fio inquebrável,
jangada varrida por chicotadas de tormenta
com agressões de rochedos a doer nos ossos.
Desço ao fundo de mim. Ao menos
aqui encontro segurança.
À minha volta os monstros investem
mas só por fora a carne sangra.
Recosto-me
num monte de recordações
que as vertigens não deixam ordenar.
Ah! Bem desejam os monstros apreendê-las
e por isso espreitam desesperadamente
através dos meus olhos.
Mas, entretanto, eu desliguei a lâmpada
que dava luz cá dentro.
Estou suspenso de mim. Acho que vou cair.
Mas não. As paredes é que rodopiam
e abrem-se agora à passagem de figuras brancas,
monstros de cal, corpos recortados.
Quem são, quem são? Ah, não apertem
pois quero respirar.
Que ouvidos são aqueles pendurados no tecto?
Como conseguiram entrar na minha cabeça
e escavar, escavar... ?
Rio-me, pois nada encontrarão
a não ser uma ampulheta marcando o tempo,
cada vez mais difuso.
Rio-me, sim, com um riso de sangue em brasa.
Dentro de mim está a vida.
Dentro de mim trago os companheiros que se agitam,
dentro de mim trago os povos que fervilham,
povos que recusam a vala comum
e reconstroem o Sol.
Dentro de mim está o amor
que se transmite em ondas de confiança.
Dentro de mim
há um carregamento de certezas
implacáveis.
É por isso que o meu sorriso
é uma arma de agressão
que transforma o ódio em desespero.
Dentro de mim, bem no fundo de mim,
é que está a passagem para a liberdade.
Mas só eu tenho a chave do alçapão.
( Prisão de Caxias, Outubro de 1972)
Carlos Domingos