PORQUÊ
De criança muito cedo, versos despertaram em mim a sensibilidade, talvez hereditária.
Voz poesia perto dos seis anos, a emoção foi modelando o meu pensar, meu sentir.
Hostil ao programa escolar imposto pelo fascismo, deleitei-me com poesias,
que não eram senão encontro com minha realidade interior.
Muito cedo comecei a dizer poemas em festas familiares, de amigos,
mesmo no trabalho de meu pai. A Balada da Neve, o Fiozinho da Fonte,,
ambos de Augusto Gil foram dos primeiros poemas que disse em público.
Seguiram-se outros, A Cabra o Carneiro e o Cevado, ou
a Noite Perdida, de António Feijó.
Aos dez anos, meu pai, foi preso pela PIDE
aquando dos movimentos políticos, que surgiram
com a campanha eleitoral de Humberto Delgado.
Ao ser posto em liberdade, os maus tratos a tortura
durante encarceramento, a que se seguiu o despedimento
do escritório onde trabalhava, acabaram com
a sua saúde frágil.
Na Amadora, após a prisão, meu pai apresentou-me poetas
que costumavam reunir-se num dos cafés centrais. Por essa altura,
conhecera também o poeta Ulisses Duarte, apreciador da
minha força infantil de dizer a poesia, deu-me poemas
seus para meu repertório, como Se Caiu na Papironga- e Deixa-me Sonhar
Pouco mais tarde escreveu um poema para mim-
A Menina e a Boneca, em que havia uma referência ao Milagre das Rosas.
De poemas de quase incitação à Resistência, poemas ternos,
fiz sempre a escolha do que pretendia dizer em púbico, sem esforço,
menos ainda forçada, ou para fazer jeito.
Há anos que o nome de Maria Dulce era citado em casa.
Meu pai tinha-lhe grande admiração desde que a vira declamar,
menina ainda.
Interrompi meus estudos, para vir com minha mãe, preparar
a vinda de meu pai cada vez mais doente.
No dia em que o vi chegar, Paris, pareceu-me um sonho.
Não pensei que conseguisse passar a fronteira.
Chegou em Abril, mal sabíamos nós que outro
ABRIL lhe abriria as portas do regresso.
As peripécias da estadia de minha mãe e minha
durante os meses de espera, são como as de tanta gente,
não merecem que me atarde nelas, visto terem-me tirado tempo
suficiente na altura em que ocorriam.
Meu irmão pequenino então, veio também para Paris
donde partimos em Maio, ele com quatro anos minha mãe e eu.
De regresso à Amadora, fui chamada a Coimbra ao pé duma tia
doente. Meu tio, durante os quinze dias que passei em casa deles
, mostrou-me Coimbra. Saber dizer as sensações que a velha cidade
me despertou...tantas foram. Tão próxima me andava a fronteira
ainda na contrariedade do pensamento. Coimbra
fascinou os meus quinze anos, não mais esqueci vida fora
, magia, encantamento que de lá trouxe e não mais perdi.
No mês de Agosto seguinte fomos de férias para as Ferreiras,
no Algarve. A praia próxima era a de Albufeira.
Conheci assim meu marido, que se encontrava acabadas
as férias, nos Açores na aviação, a fazer o serviço militar.
Aos dezasseis anos voltamos todos para França.
O estado de saúde de meu pai agravara-se. Não sabiam os médicos
se o poderiam salvarMais uma vez longe do país corria todas
as manhãs a comprar o Monde ao quiosque mais próximo
a cerca de dois quilómetros de casa. Esperança de notícias de Portugal.
notícias que claro não apareciam nunca. Pelo menos a notícia esperada.
A do fim do fascismo. Todas as manhãs a mesma sofreguidão,
seguida do mesmo desalento.
O meu pai melhorara, embora fosse sempre um grande doente.
Começamos a militar com amigos portugueses em Saint Denis.
Ao Domingo vendíamos jornais, dávamos outros.
Tempo de grande solidariedade esse em que jornais nos chegavam
sem que soubesse bem donde. Os portugueses não estavam autorizados
a fazer política em França. Houve dias em que vi os
jornais serem-me arrancados das mãos por compatriotas
nossos para desaparecerem escondidos numa barraca,
porque tínhamos sido denunciados por alguém
e a polícia procurava-nos.
Nós, embora a nossa família estivesse em casa de meus avós
paternos, casa muito modesta, olhávamos o "bidonville"
com olhos do exterior. Na nossa desdita acrescentada
pela impossibilidade de voltar a Portugal e pela doença
do meu pai, sofríamos de ver nossos irmãos, muito jovens ainda,
desertores, que o Luís Cília tão bem soube cantar,
a viver naquelas condições que o fascismo, ao longe
continuava a ditar.
As festas da Associação dos Originários de Portugal
eram na época meio de expressão cultural, de exilados,
desertores e emigrantes. Aí cantava então o Luís Cília
de guitarra na mão a brandir a sua justiça. Por aí também
eu disse poemas como -Maldição- do Jaime Cortesão,
conheci o poeta Campinas amigo que muito impressionava
minha juventude, com seus cabelos brancos,
a falarem-me de mais lutas, próprias e de amigos
Aí conheci e aprendi a dizer o nome de Catarina,
ceifeira do Alentejo, assassinada a exigir pão para os filhos.
Assim quando o António Vicente Campinas
me pediu que dissesse o seu poema Catarina,
disse ser para festa daí a quinze dias, senti medo,
medo verdadeiro do palco pela primeira vez. Veio o futuro
a provar que havia de quê. O poema era grande, veio a formar
um livro, e quinze dias era apertado. Falhou-me a memória no palco.
O Campinas à minha frente assistia tranquilamente à desfaçatez
com que fui compondo os versos à medida que me iam surgindo.
Atrás de mim o filho dele, que devia servia-me de ponto,
de mãos na cabeça, aflito, nem sabia onde procurar os pedaços
desordenados que o público aceitava por desconhecimento.
Que me perdoe a memória do poeta que pela minha anda sempre
com a mesma ternura.
Voltando, meus poemas infantis, escritos no tempo da instrução
primária, tinham ficado abandonados por aqui e por ali,
como tudo o que tínhamos em casa. Não se salvou nada
da casa de meus pais, nem meus livros de estudo.
Talvez por isso, o alfarrabista de Faro me conhece tão bem.
Que continuo a procurar não os meus livros evidente,
mas de livros de escola que me tragam os versos que li, menina.
O fascismo onde passava era pior que um incêndio!
Não poupava nada, arrasava tudo ao passar.
Tudo por lá ficou, livros, bonecos, brinquedos.
Móveis e recordações. Como com outros, com muitos outros
e quantos, quantos em mais trágica situação.
Da nossa infância todos sentimos saudades, pla ternura
que nela recebemos, mesmo se há terríveis recordações
que a acompanham.
Quando aos dezoito anos parti para me casar,
meus pais, os amigos recearam as consequências
do meu regresso a Portugal. O fogo da juventude
levava-me a caminho do amor. E das desilusões.
Depois de arriscar por amor pensava encontrar o que
procurava. A juventude? Assim. Se aludo ao meu casamento
é que nos meus versos desde o início do meu casamento,
há o desabafo que mostra a minha decepção.
Depois fui mãe.criei os filhos. Não tinha tempo para escrever
com vários filhos pequenos.
Não havia à minha volta quem me pedisse versos.
Arte não era o que se esperava de mim. Deixei a poesia;
guardada no meu íntimo, para ocasião mais propícia.
Marília Gonçalves
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