Naquela manhã idêntica a tantas outras, meu irmão saía de casa
para ir para o Liceu. Despediu-se do pai que nesse momento
começara a barbear-se. Deve como de costume ter-se despedido
da avó e da mãe e começou a descer as escadas do 3° andar que
o separavam da rua. Precisamente no momento em que agarrou
a maçaneta da porta da rua, parou surpreendido e assustado.
Um grito indescritível ecoava pelas escadas, batia contra as paredes
com tal força que de imediato percebeu tratar-se de grito do pai!
Subiu as escadas de quatro em quatro, a uma velocidade a que
o medo obrigava (nosso pai era muito doente e por vezes havia
cenas semelhantes em casa que não anunciavam nada de bom
e que acabavam muitas vezes na ida de nosso pai para o hospital).
A porta de casa abriu-se ao seu chamamento.
Qual não é o espanto quando depara com um pai
que exultava de alegria explosiva e comunicativa!
Ora o que se tinha passado era o seguinte: enquanto
fazia a barba, meu pai de transístor aceso ouviu
a transmissão da notícia de que em Portugal
estava a dar-se um golpe de estado. Para quem
sempre acreditara na possibilidade da queda
do regime salazar/caetano, nunca lhe passou pela cabeça
que o golpe viesse ainda de forças mais reacionárias,
Para ele era límpido! O Golpe era de esquerda e era para
libertar Portugal e seu povo. Para quem na altura
se encontrava exilado desde 1962, era o concretizar
do sonho, da espera de cada dia
E foi uma ronda de alegria infinda que encheu a casa
A mãe, eufórica até mais não, precipitou-se para o quiosque
mais próximo onde foi comprando todos os jornais
que surgiam; procurando notícias mais aprofundadas.
Eu em Faro, infelizmente, como meus pais não tinham telefone
(nem todos os exilados políticos tiveram exílios dourados,
como foi o caso de uns quantos) não podia comunicar
com eles e partilhar assim o que apesar de pouco íamos
obtendo de notícias vindas de Lisboa!
A minha avó materna, que já vira muito e muitas vezes
se decepcionara com anúncios logrados da queda do regime,
mantinha-se num estado de fleuma, aguardando confirmação
e concretização do acontecido
Mas foram dias de exuberância e excitação, de preparativos
para a vinda de meu pai a Portugal, que as dificuldades agravadas
pela sua doença complicavam e assim so a 4 de Maio
o recebemos em Lisboa onde chegou de camioneta. Família e amigos
ostentavam cravos vermelhos e eu tinha uma espécie de xaile vermelho
pelas cosAssim que as aulas acabaram chegou a família toda e foi
o Verão de 1974 o reencontrar tas que cruzava sobre o coração
de uma vida repartida por todos e partilhada por amigos e povo
que começava a colher as primeiras conquistas de Abril,
que dia após dia se concretizavam!
Num país em que os Militares eram o nosso orgulho
e que passavam a fazer parte da grande família portuguesa
Por toda essa inesquecível alegria, pela fraternidade,
pelo nosso olhar límpido e seguro e por quanto de bom
e humano Abril nos trouxe
VIVA O 25 DE ABRIL DE 1974 PARA TODO O SEMPRE
e VIVA A VIDA que o 25 de Abril com
pensou de quanta agrura possamos ter vivido anteriormente.
Marília Gonçalves
(nota- enquanto escrevi este breve texto, todos os que partiram e que choro, meu pai,
minha avó minha tia (a viúva de Alex),
Alfredo Dinis, o meu avô preso 24 vezes
que resistiu ao Tarrafal e tantos outros, estiveram aqui,
presentes e vivos, tão vivos como o estavam no
25 de Abril de 1974, uma profunda alegria
me acompanhou durante estes momentos de escrita!)
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