O cavalinho de pau
RIDE A COCK HORSE TO BANBURY CROSS (1902) - Ilustração de William Wallace Denslow (1856 - 1915), ilustrador e caricaturista, do livro “Denslow's Mother Goose”.
ESTREMOZ NOS ANOS CINQUENTA
Nasci
em 1946, em Estremoz, no Largo do Espírito Santo, que é um largo que
tem como referência a fonte do mesmo nome, a Torre das Couraças, o
Convento dos Agostinhos que foi Fábrica de Cortiça dos Reynolds e dos
Robinson, assim como o poeta Sebastião da Gama, que ali morou no segundo
andar do número dois.
O
alegrete, o espaço em torno da fonte e o adro, foram os terreiros
primordiais da minha infância, os palcos primitivos onde desempenhei os
primeiros papéis da minha vida, enquanto brincava, o que era, sem
dúvida, a minha principal e mais importante tarefa de todos os dias.
Uma
das minhas brincadeiras iniciais foi o cavalinho de pau, o que é
natural, pois nos anos cinquenta do século passado, eram frequentes, em
Estremoz, o carro de tracção animal, os trens e as caleches, bem como o
próprio acto de montar a cavalo.
Os
carros de tracção animal, puxados por uma ou duas bestas, eram o
veículo usado diariamente no transporte de carga: azeitona para os
lagares, trigo para a moagem, mercadorias da estação da CP ou da
Camionagem para o comércio local, assim como pelos hortelões que das
hortas e quintas dos arredores vinham vender vegetais e fruta ao mercado
municipal.
Nos trens se faziam transportar por um cocheiro fardado, as famílias dos grandes proprietários rurais.
Pela
cidade circulavam também cavalos, por vezes conduzidos a pé pelos seus
tratadores, a fim de beberem água no chafariz do Lago do Gadanha. É que
os grandes proprietários rurais tinham casa no campo, que acumulavam com
casa na cidade. Esta, estava provida de cavalariça onde alojavam os
animais, assim como os seus aprestos, a palha destinada à alimentação e
para enxerga, assim como os trens e as caleches. Era também corrente na
época, ver alguém dessas casas, passear a cavalo pelas ruas da cidade ou
trotear e voltear no Rossio Marquês de Pombal, o qual funcionava assim
como picadeiro público.
O REGIMENTO DE CAVALARIA 3
Desde
1875 que está instalado em Estremoz, o Regimento de Cavalaria 3. Do
extenso e valioso historial do RC3, se destaca a heróica e brilhante
vitória alcançada pelos seus cavaleiros, sobre o exército espanhol na
Batalha de Fuente de Cantos, travada a 15 de Setembro de 1810, no
decurso da Guerra Peninsular.
Os
cavaleiros do RC3 quando regressavam ao Quartel após manobras
realizadas no campo, iam com as suas montadas até ao Lago do Gadanha
para se lavarem e refrescarem, descendo para lá por uma rampa que
existiu do lado do Jardim, até cerca dos anos 50 do século passado,
assim como outra, do lado oposto àquele. Mais tarde, essas rampas, que
estavam vedadas com correntes, foram sacrificadas, porventura em nome do
progresso. Nos anos sessenta e com o Lago já sem rampas, eram os
pelotões regressados do treino de campo para a Guerra Colonial, que ali
entravam cobertos de lama, para uma primeira lavagem de corpo, que não
da alma. Nessa época era vulgar, ver oficiais a passear a cavalo pelas
ruas da cidade. De resto, quando havia paradas militares no Rossio, a
presença da Cavalaria era uma constante.
A GUARDA NACIONAL REPUBLICANA
Onde
hoje é a Igreja dos Congregados, situava-se a incompleta Igreja do
Convento da Congregação do Oratório de S. Filipe Nery, que como é
sabido, ao contrário da Companhia de Jesus, era aberta “às luzes”
trazidas pela revolução científica de Copérnico e Galileu. Esta, duma
assentada, revogou o não só bíblico como aristotélico modelo geocêntrico
do Universo, levando-nos a ver o Universo com outros olhos, que não os
da divina revelação.
Ali
estava instalado o Quartel da Guarda Nacional Republicana e nas coxias
da hoje Igreja, estavam instaladas as cavalariças. Dali saiam os
guardas, aos pares, para patrulhas a cavalo nas freguesias rurais.
AS TOURADAS
O
meu avô Manuel Alturas, ferroviário aposentado, republicano e amante da
Festa Brava, levava-me aos touros e comprava rebuçados que comíamos
durante a corrida. Eu ficava encantado com o ritual das cortesias e o
evoluir elegante do ginete de Mestre João Branco Núncio, a quem os mais
velhos chamavam “O Califa de Alcácer”.
Quando
ia às touradas usava calças de cós alto e jaqueta que o meu pai,
alfaiate de lavradores e de toureiros, confeccionara para mim. Um
pequeno chapéu à Mazantina completava os meus adereços. Desse tempo,
guardo como relíquia, a minúscula jaqueta que levava às touradas.
O CIRCO
Em
certas ocasiões, tais como a Feira de Maio ou a Feira de Santiago,
vinham a Estremoz circos que montavam tendas no Rossio Marquês de
Pombal. Os melhores circos traziam cavalos amestrados e, por vezes,
equilibristas que em cima deles, desafiavam o impossível, fazendo coisas
incríveis, para deleite de vista.
A VASSOURA
Do
exposto se conclui que o cavalo era uma presença certa na minha vida
diária. Natural era, pois, que eu, habilitado com as asas da minha
imaginação, sonhasse em ser cavaleiro. E fazia-o, brincando com o meu
cavalinho de pau, o qual durante muito tempo foi a vassoura de cabo
alto, lá de casa.
Nas minhas cavalgadas, fazia como o “Califa de Alcácer”. Por vezes mudava de montada e passava a cavalgar a cana de caiar.
Certo
dia, a minha mãe, farta das minhas traquinadas com os utensílios
domésticos, acabou por me comprar um cavalinho de pau, mesmo a sério,
com cabeça de cavalo, crinas, arreios e tudo. E logo que o estreei, como
ele não dizia nada, com todo o meu contentamento fui eu próprio que
relinchei por ele, o que emprestou mais realismo à minha representação. E
sabem que mais? Quando montava o meu corcel, usava sempre um barrete
feito de papel de jornal, que o meu avô me ensinara a fazer numa
tourada, quando me esqueci de levar o meu chapéu à Mazantina.
O
meu barrete de papel era um acessório importante. Quando fazia de
militar a cavalo, usava o barrete posto de trás para diante e uma espada
de madeira presa no cinto das calças. Já quando era cavaleiro
tauromáquico, punha o barrete de papel atravessado na cabeça e usava um
pau a fazer de farpa. Mas nada de usar jaqueta ou chapéu à Mazantina,
porque isso era só nos dias de festa.
As
minhas representações equestres eram diversificadas, iam do trote ao
galope, passando pelo volteio. Nelas, na minha imaginação, eu era sempre
um garboso cavaleiro montado num puro-sangue de Alter, que cavalgava
horas a fio no Largo do Espírito Santo. Acontecia às vezes que uma
tourada ficava a meio do seu curso ou, o que era bem pior, não conseguia
concretizar uma carga de cavalaria. Sabem porquê? É que a minha mãe
aparecia à janela a gritar:
- “Hernâni anda para a mesa, que são horas de comer!”
E eu não resistia à chamada, porque com tanta cavalgada, já tinha a barriga a dar horas.
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