Meu amor, apesar do frio que cristaliza águas do nosso lago, aqui, de perto da suave paisagem que sempre soube acolher nossos cândidos segredos, te escrevo.
Neva! Flocos, por ora, minúsculos dispersam-se no ar, asas de borboleta a tiritar, quando nenhum raio de sol parece ter vontade de surgir, dentre a cinza esbranquiçada do dia. O ar tem a cor do próprio gelo.
As águas calmas pela força da natureza transformam-se num convidativo espaço para brincadeiras e patinagem. Lembras? Quanta recordação, a desses distantes tempos, quando cobertos de longas capas e capuzes, de luvas espessas e quentes, fazíamos frente ao Inverno, porque o sol, esse estava dentro de nós... o nosso olhar de garridice cheio, dava à paisagem os tons vívidos e alegres, que só a juventude adolescente distingue. O tempo das certezas, a época de placidez, dos amanhās claros e sem mácula.
Trazíamos então, pelos desvelos de avós, a doce e perfumada merenda, sempre renovada desde a meninice. Como se de longe ainda velassem nossos entusiásticos passos.
O que poderiam contar de ambos, árvores e penedos? Que memória guardarão as pedras de quanto de ambos sabem?
Lembrarão os troncos hoje despidos, a minha própria nudez? O cair de minha blusa, de minha saia? E o solo, guardará inscrito na sua história, a marca de nossos corpos, leves?
A neve cai, e um brando calor, percorre-me desde o corpo à alma. Tantas são as recordações que aqui despertam dos dois.
Nunca gravámos num tronco, a ferida duma árvore com a vã passagem de nossos nomes, certos de que, mais profundo, o fogo de nosso olhar, marcaria a matriz da terra para sempre.
Os campos em redor foram ficando caiados de frio. Altas ramagens eram sugestão de vidro que sopro leve estilhaçaria.
O frio agudo, presente em quanto observava, não impedia a réplica de pluma, de acompanhar-me o gesto. Aqui estou, pois escrevendo para nós. Com que embriaguez e euforia... encontro-me aqui contigo, no espaço da minha escrita, a traços de pincel e de memória, reerguendo de escombros, uma realidade sempre presente. A imensidão dos campos, no cenário duma história única no decorrer de nossas vidas.
Nem uma folha, a colorir o chão, que as não havia, no adiantado do Inverno. Mas se as houvera, o tapete cuja espessura aumentava continuamente, cedo as teria escondido do mais apurado olhar.
Nevava agora com muito mais força.
Olhei o chão, na esperança duma pegada. Nada, o branco deserto, parecia despovoado, nem uma avezinha, animava com seu trilo, a branca imensidão.
O Lago quase convidava a travessia. Era, porém cedo. Talvez amanhã, se o frio continuasse e as águas agora quietas, se tornassem caminho e passagem.
Uma estranha sensação me invadia, como se ali, por detrás dalgum penedo, ou de alguma curva no caminho, me espreitasses e partilhasses a emoção que sentia. Estavas de tal modo presente, que por uma nesguinha mais, serias a realidade concreta do instante.
- Soubéssemos o porquê de nossos pensamentos... apenas nos surgem muitas vezes por analogia..
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Recordas, quando ainda garotos, encavalitados na tosca janela do sótão da quinta, olhávamos a lebre, que corria, pela campina nevada, ela também, tão esbranquiçada, que parecia ter-lhe nevado por cima também? E a pega que lhe grasnava, voando-lhe por cima, quase rasteirinha, o que parecia irritá-la como avião de caça, que perseguisse vítima... que ideia a da pega; porque seria aquela perseguição, apenas brincadeira?
Depois, acabou a lebre por se ir afastando, deixando no solo a marca das patas, sulcando fundo a neve solta.
Ali ficámos olhado a traça branca, que se gravara no solo e nas nossas memórias, tão repletas de Inverno, aquecido pelo verdor de nossos tenros anos.
Marília Gonçalves
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