Meu coração de poeta
nasceu em Lisboa um dia
numa cidade secreta
que há dentro da nostalgia.
Foi feito de largos gestos
de pais, de tios e de primos
E d’emprestados avós
onde cresceu embalado
por pregões que ainda havia
nesse tempo ignorado
que a Liberdade mordia.
Meu coração de poeta
que me deu voz muito cedo
olhos e mãos e carícias
ia soletrando medo
no meu Pais de polícias
Mas coração de poeta
tem asas e lesto voa
pra de repente cair...
Minha cidade Lisboa
poeta do meu sentir.
Calçadas, pedras e ruas
Praça do Chile, Avenidas
Arroios e seu mercado...
Desdobravam-se-te vidas
no teu chão amordaçado.
Mas Lisboa era Lisboa
um coração a nascer
descobre que ainda voa
mesmo se lhe faz doer.
Voavam jornais dobrados
pelas varandas adentro
dos meus olhos que guardavam
a poeira que em bailado
estremecia na janela
entre a luz do cortinado.
Lisboa era muito mais
era o Jardim Constantino
onde bandos de pardais
ensinavam o menino
o ardina sem jornais.
Mas ia muito mais longe
Lisboa não acabava
prolongava-se no ar...
Nas corridas das varinas
chinelas a dar a dar.
Minha Lisboa de cegos
tocadores de concertina
de carros e de morangos
ou de ciganas que às vezes
passavam a ler a sina...
Minha Lisboa poeta
nos meus olhos de menina!
M.G.
Lisboa. Heróis de Quionga...
Havia frio do Natal.
Pela mão de minha mãe
Imaginava Natais
Natais de quem não os tem.
Lisboa não tinha ali
no vento fresco da rua
a luz a decoração
do Rossio da Baixa toda;
Mas na imaginação
cada montra já perdida
dava o enlevo que então
só nos dá a própria vida.
Havia quase um calor
no frio, que sabia bem.
Porque falava de amor
mesmo àqueles que o não têm.
As prendas pobres pequenas
tinham a força do riso
a forma do coração...
Nada mais era preciso
Havendo risos e pão.
M.G.
Que saudades avózinha
dos contos que me contavas
quando eu ainda menina
nada sabia do tempo
e soltava minhas asas
entre sonho pensamento.
Na tua voz me embalavas
os contos brandos macios
na voz em que mos contavas
era entre grave, serena.
A tua mão branca fina
poisava sobre a morena
cabeleira da menina.
Sentada numa cadeira
feita por teu irmão Zé
que conhecia a maneira
de transformar de moldar
com arte sabedoria
dos que domam a canseira
a fazer de noite o dia
sentada nessa cadeira
teu conto era mais verdade
havia na brincadeira
algo de seriedade.
No agrado de meus olhos
ao sorrirem para ti
não inventavas passado
o futuro era ali.
Presa nas tuas palavras
no azul que havia em ti
brincavam as tranças loiras
que ainda tens na memória...
teu conto era a vida inteira
tua vida, minha história.
Os anos foram passando
mas vejo o mesmo sorriso
a pairar sobre meu leito...
Meu pequeno paraíso
no teu quarto branco estreito
onde havia o mais preciso.
Ainda hoje estás sentada
na mesma eterna cadeira
embalo da meninice
a minha vida primeira:
A ternura do sorriso
que voltavas para mim
transportou-me a sábio mundo
onde o sonho principia
e começa o imaginário.
A volta do tempo ido
é que me trouxe ao que sou
entre o riso ou o gemido
o meu olhar não mudou.
Vejo tua mão na minha
acariciares-me a testa.
Ó minha querida velhinha
ser menina era uma festa.
Agora mulher e mãe
a tua lembrança doce
o teu vulto ao pé de mim
constróem meu dia de hoje...
A fazer-me ser assim!
M.G.
Acima do país e da infância
de tudo quanto fui e que passou
ultrapassar do eco que é distancia
cidade a navegar no mar que sou
desenham-se fragatas no olhar
de quem partindo nunca regressou;
Lisboa a saber a mar
na sede que me ficou.
Atravesso tuas margens
meu rio minha juventude
cacilheiros e viagens
desses tempos em que pude
gravar na alma as imagens
No desferir de alaúde
fui levada na aragem
de vigor e de saúde.
Meu rio e minha cidade
o Tejo a espelhar canoa
espreita do alto o castelo…
Eu morro, ao dizer Lisboa.
Marilia Gonçalves
POEMA TEJO
Estendida ao vento
a cidade tem nos olhos
a brancura em que se agita.
Aceite no espaço azul
tem voz de rio marinheiro.
Ancorada ao oceano
Lisboa tem voz de ABRIL
a olhar para o Barreiro.
Marília Gonçalves
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