O 25 de Abril foi decerto a mais bela página de História que se escreveu em Portugal e até no Mundo
Uma Revolução em que quem detinha as armas tudo fez para nunca ter que servir-se delas!
Mas
nem a melhor revolução pode operar milagres, as mentalidades foram
parte da herança desse quarenta e oito anos de sofrimento do nosso País.
Por isso pelo vosso humanismo exemplar é o meu coração de menina que foi magoado também e prematuramente que vos diz Obrigada!
Por isso que mais uma vez vou escrever aqui mais um pedacinho de acontecimentos da minha vida de menina filha de antifascista e Militante
O meu pai pertencia ao MUD. Se é certo que as simpatias políticas eram vermelho vivo
era esse o Movimento a que estava ligado.
Meu
pai foi preso a 22 de Maio de 1958. Lembro-me de tudo como se fosse
hoje e se não esqueci a data, é que na véspera 21 por conseguinte ,
tinha sido o aniversário de meu pai.
De manhã nesse dia 22 fui para o Externato que frequentava . Vivíamos na Amadora
Do
que na classe se passou nessa manha não me lembro de nada de especial
porque não havia razão para isso. Uma manhã em que a vida decorria
como em todas as outras manhãs e tardes escolares.
À hora de almoço fui a casa para cerca das 14 horas entrar nas aulas outra vez.
Quando cheguei a casa , eu tinha então dez anos, minha mãe veio abrir-me a porta.
Nada havia na expressão de minha mãe que me alertasse para o que quer que fosse.
Foi
por isso com espanto que ao ir entrando corredor adiante, comecei a
ver a casa virada dos pés para a cabeça, tudo entornado no chão! Tudo
fora do sítio habitual. Gavetas fora dos móveis roupas por todo o lado
Dirigi-me à cozinha. O mesmo espanto! Tudo revirado e até a despensa
tinha as prateleiras esvaziadas. Tudo, tudo espalhado por todo o lado
Enquanto
fui observando aquele estado de coisas não me lembro de mais uma vez
ter notado algo de estranho no rosto de minha mãe. Mas as palavras que
o espanto havia retido, acabaram por sair em forma de pergunta. O que
é que aconteceu? E minha mãe o mais naturalmente do mundo
respondeu-me:
-
Nada! Foi o papá que teve que ir para o Porto de repente e não
sabia de umas coisas importantes que tinha que levar e com a pressa
foi isto que deu.
-
Lembro-me de um mutismo que me tomou, crédula mas estranha. Eu era uma
criança sensível que já dizia poesia há alguns anos e em vários
sítios. A própria directora do externato que era uma pessoa
extraordinária de rectidão e justiça que fazia desabelhar as crianças
assim que aparecia pela sua expressão que podia à primeira vista
parecer dura, me chamava quando havia algum momento livre para ir
declamar para ela. E quanto mais o poema apelasse para sentimentos
humanos mais ela exultava. Pois mesmo essa sensibilidade não conseguiu
captar senão aquela sensação de espanto que me invadiu.
-
É verdade que não muito antes, uma tarde, meu pai chegara a casa com o
fato manchado de azul e algo ofegante. Ouvi-o a dizer a minha mãe que
na manifestação em Lisboa a guarda republicana lançara os cavalos
sobre a multidão e que lhe parecia que umas crianças que iam a passar
não teriam ficado bem.
- Mas a conversa não era comigo e nada mais fiquei a saber.
Não
percebia patavina de política nessa idade. O que me ensinavam era a
proteger os mais fracos, os pobres a gostar das pessoas Mas política,
daquilo que pensavam ou faziam até aí nada soube.
Minha
avó materna apareceu (para mim inopinadamente e levou-me para casa de
familiares onde vivia a sua irmã Josefa, ( a viuva do Alfredo Dinis,
mas isso na altura ainda sabia menos, nem que tal pessoa tinha
existido. Nessa casa que era a da irmã do Alex, fui recebida com
carinho muito mais intenso que o habitual. É possível que bem no fundo
de mim começasse a germinar alguma sementinha de ideia, mas sem mais.
Uma impressão, uma estranha impressão.
Não
voltei à escola até ao fim de semana. No Domingo seguinte minha mãe
que estava grávida, tinha mandado fazer um vestido e um casaco comprido
rosa velho, parece que o estou a ver...
Disse-me:
-
vais ao casamento da prima mas assim que chegares dizes que o papá
foi para o Porto e que por conseguinte nem sei se tenho que ir ter com
ele, portanto não vou ao casamento, embora tenha muita pena.
É
claro que essa minha frase à chegada perto da família tinha a
finalidade de os prevenir da minha ignorância dos factos. Assim
aconteceu. Acabado o recado fizeram-me um sorriso meigo e nada mais.
Na
segunda-feira de manhã, minha mãe completamente tranquila quanto ao
meu estado de desconhecimento preparou-me e lá fui para a escola.
Externato ou não externato nunca me lembro de dizer senão vou para a
escola.
Acabada de sentar na minha carteira, entra a Isabelinha, neta dum amigo de meu pai, e rápida
Lança-me;
Então o teu pai foi preso? De repente num salto estava em pé, e sem
hesitar, numa verdade luminosa que não sabia donde me surgia retorqui
enérgica:
- Está ! Mas não foi por matar nem roubar! Mas porque é bom!
-
Companheiro, nesse momento ergui alto a cabeça e os olhos num jeito
que me ficou até hoje e nunca mais em nenhuma circunstância, alguém
conseguiu vergar-me a cabeça nem fazer-me baixar os olhos.
E
era apenas o início de uma época de provações e de privações que
mesmo nesse momento não podia prever. A prisão embora curta, a tortura
a perda do emprego que adveio e as suas consequências agravaram a
saúde frágil de meu pai!
E tudo a dado momento se fechou à minha frente.
Até
que com catorze anos depois de passarmos por muita falta, vim com
minha mãe abrir caminho para a vinda de meu pai que começara com
vómitos de sangue pouco tempo depois de ser libertado.
À chegada a França em 62 não era já a menina ingénua que chegava
Era uma mulher que a dor es privações haviam amadurecido prematuramente
E deitei-me ao trabalho! Sempre com o mesmo olhar bem erguido!
Mas
o que recordo mesmo de casa de mais familiares de casa de meu avô, o
tal que era enfermeiro, avô emprestado de segundas “núpcias” de minha
avó mas avô de coração era aquela frase que voltava sempre: isto já
está por pouco Não tarda cai!
Pois mas os anos foram passando e o fascismo não caía, armado de pedra e cal parecia ser!
Até que foi Abril. (1)
Como
duvidar de Abril? Como duvidar do futuro ridente de Portugal! Abril é
uma conquista que nunca se perderá! poderá passar e atravessar
trilhos tortuosos, mas há-de erguer –se sempre à luz do dia
Porque Abril foi a palavra justa que restituiu a voz a todos os que a dor tinha silenciado
Eu fui apenas uma entre casos e casos sem fim de crianças de quem conheço historias que só muita maldade podiam provocar.
Essa
maldade que fechava os olhos ao povo de Portugal era o salazarismo o
fascismo de uma hipocrisia ímpar, de falsos sorrisos, de palavras que
se fingiam mansas para enganar incautos.
Os
outros os que sabiam, e calaram e participaram, mesmo para a
consciência própria que durante anos não tiveram, no momento da morte às
vezes ela acorda de dedo acusador e não queria estar no lugar deles.
E
isso amigos e Companheiros o povo de Portugal há-de sempre, porque é
bom generoso e fraterno, vir lembrar a quem tente ofender ou ferir
Abril, que Abril é para sempre a Voz da Liberdade a Voz de Portugal!
Até
hoje nunca tinha querido escrever estes factos, (salvo em poema que
escrevi para crianças da minha rua quando meus filhos eram pequenos).
pensei que a dor que mora nestes acontecimentos me faria estoirar de aflição.
Como vê resisti a esta primeira prova do fogo! Quem sabe talvez um dia venha contar mais alguma página da minha vida infantil
Até sempre Capitães!!!!
Marília Gonçalves
(1) um dia contarei como se viveu na família e à nossa volta o decorrer de amanhecer único
que nos devolvia às nossas próprias vidas, de história desviada e em muitos campos interrompida.
1 comentário:
ACUSO
Marilia Gonçalves
12/02/2019, 19:03
para maurice
ACUSO
Cavalo de vento
Meu dia perdido
O meu pensamento
Anda a soluçar
Por dentro do tempo
De cada gemido
Com olhos esquecidos
Do riso a cantar
Quem foi que levou
A ânfora antiga
Onde minha sede
Fui desalterar
Sementeira de astros
Que o olhar abriga
Por fora dos versos
Que hei-de procurar
Quem foi que em murmúrio
Na fonte gelava
Essa folha branca
Aonde pensar
Quem foi que a perdeu
Levando o futuro
Por onde o meu barco
não quer navegar
Quem foi que manchou
a página clara
Com água das sedes
Que eu hei-de contar
Quando o sol doirava
As velhas paredes
Da mansão perdida
De risos sem par
Quem foi que levou
Os astros azuis
Do meu tempo lindo
Meu tempo a vogar
Por mares de estrelas
Vermelhas abrindo
Quando minhas mãos
Querem soluçar
Não mais sei quem foi
só sei que foi quando
a noite vestiu o dia que era
E todos os sonhos
Partiram em bando
Fugindo de mim e da primavera
Mas há na memória
Da minha retina
A voz que se nega
A silenciar
Com dedo infantil
Erguendo a menina
Diante do réu
Em tempo e lugar!!!
Marilia Gonçalves
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