de risos e luar
de sol ardente
onde poisava meu olhar
contente
meu inocente olhar
alheio ao mal
que vem do sofrimento
meu terno e doce olhar
onde se via
sentir e pensamento...
Caíram noites sobre meu olhar
não noites como noites conhecidas
terríveis noites, noites sem sonhar
de monstros e de feras escondidas
noite sombria, noite de ameaça
onde todo o futuro se extinguia
Ó Noite do Terror que nunca passa
onde o nascer do dia não surgia
Foi uma longa noite repartida
por tudo o que é sensível e verdade
foi horrífica noite repetida
que gela o tempo e todo o espaço invade
uma noite de séculos, milénios
que ali em meio século se vivia
que abocanhava a arte, alunos, génios
noite que cada dia renascia
que cegava a palavra
ardia livros
tentava prender o pensamento
essa tremenda noite de agonia
quando até o tempo era cinzento.
Mas nas dobras da noite havia quem
alheio à realidade se escondia
e não via o pranto de ninguém
nem a terra e o luto que a cobria
foram tantos e tais esses vexames
tantas e tais afrontas se sofria
da negação da dor e sofrimento
que em cada Humano os astros implodiam
de ondulantes trigais à fome ao vento
e que em flâmulas a noite convertiam
caía aqui e ali um nosso irmão
como um sol se desfaz no horizonte
à espera da partícula de pão
que se reparta a rir de monte em monte.
Por isso se ouvia opresso grito
brado puro que canta a Liberdade
num alerta que enchia o infinito
num ideal de Paz e igualdade
Marília Gonçalves
Rua Actor Vale. Lisboa
Ó infância sorridente
tanta, tanta gente boa
e eu de todos tão crente.
Rua berço de meus passos
no teu quintal um jardim
escrevi os primeiros traços
do que eu própria fiz de mim.
Lembrança cofre memória
que me devolves a rir
páginas da minha historia
cravadas no meu sentir.
Rua Actor Vale. Meus pais
que eram sangue de Lisboa
infância do nunca mais
que ora alegra ora magoa.
Saudade sim mas tão viva
tão inteira sem ter fim
da minha casa perdida
do quintal que era um jardim.
Marília Gonçalves
Lisboa em águas de Tejo
vem desaguar-me na mão
cada verso é mais um beijo
saído do coração.
Lisboa cidade rosa
olhos caiados de sol
Ó asa de mariposa
em vozes de rouxinol.
Lisboa cidade rara
meu berço ninho ao luar
há sonoridade clara
no adormecer do mar.
Lisboa o céu incendeia
o teu brilho teu fulgor
como tela ainda cheia
da alma dalgum pintor.
.
Lisboa das Avenidas
pregões, ruas e mercados.
A vida de tuas vidas
flor silvestre, loiros prados.
Lisboa em ti eu deponho
na saudade que tu és
toda a imagem de sonho
do Tejo a beijar-te os pés.
Marília Gonçalves
Meu coração de poeta
nasceu em Lisboa um dia
numa cidade secreta
que há dentro da nostalgia.
Foi feito de largos gestos
de pais, de tios e de primos
E d’emprestados avós
onde cresceu embalado
por pregões que ainda havia
nesse tempo ignorado
que a Liberdade mordia.
Meu coração de poeta
que me deu voz muito cedo
olhos e mãos e carícias
ia soletrando medo
no meu Pais de polícias
Mas coração de poeta
tem asas e lesto voa
pra de repente cair...
Minha cidade Lisboa
poeta do meu sentir.
Calçadas, pedras e ruas
Praça do Chile, Avenidas
Arroios e seu mercado...
Desdobravam-se-te vidas
no teu chão amordaçado.
Mas Lisboa era Lisboa
um coração a nascer
descobre que ainda voa
mesmo se lhe faz doer.
Voavam jornais dobrados
pelas varandas adentro
dos meus olhos que guardavam
a poeira que em bailado
estremecia na janela
entre a luz do cortinado.
Lisboa era muito mais
era o Jardim Constantino
onde bandos de pardais
ensinavam o menino
o ardina sem jornais.
Mas ia muito mais longe
Lisboa não acabava
prolongava-se no ar...
Nas corridas das varinas
chinelas a dar a dar.
Minha Lisboa de cegos
tocadores de concertina
de carros e de morangos
ou de ciganas que às vezes
passavam a ler a sina...
Minha Lisboa poeta
nos meus olhos de menina!
Marília Gonçalves
Lisboa. Heróis de Quionga...
Havia frio do Natal.
Pela mão de minha mãe
Imaginava Natais
Natais de quem não os tem.
Lisboa não tinha ali
no vento fresco da rua
a luz a decoração
do Rossio da Baixa toda;
Mas na imaginação
cada montra já perdida
dava o enlevo que então
só nos dá a própria vida.
Havia quase um calor
no frio, que sabia bem.
Porque falava de amor
mesmo àqueles que o não têm.
As prendas pobres pequenas
tinham a força do riso
a forma do coração...
Nada mais era preciso
Havendo risos e pão.
Marília Gonçalves
Acima do país e da infância
de tudo quanto fui e que passou
ultrapassar do eco que é distancia
cidade a navegar no mar que sou
desenham-se fragatas no olhar
de quem partindo nunca regressou;
Lisboa a saber a mar
na sede que me ficou.
Atravesso tuas margens
meu rio minha juventude
cacilheiros e viagens
desses tempos em que pude
gravar na alma as imagens
No desferir de alaúde
fui levada na aragem
de vigor e de saúde.
Meu rio e minha cidade
o Tejo a espelhar canoa
espreita do alto o castelo...
Eu morro, ao dizer Lisboa.
Marília Gonçalves
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