A Duplicidade do Poema
Vem musa solta o grito do poeta
Que perdeu voz
no espelho onde se vê
a infância repleta
De dias hoje sós.
Há muito o muro antigo
Se esfumou
De alegre vaguear
Quem sabe o caminho
Onde ficou
Sua voz a cantar
Num mês de Junho
em domingo de luz
Entre dias de escola
Os olhos nus
De letras e de livros
Espalhei no campo o meu cantar
De riso aberto
Como água a saltitar
Na sede de um deserto
Olhava as coloridas flores
Que vestiam o dia
Como a minha alegria.
Em redor voava a passarada
Trilos soltos no ar
Eu era um passarinho
A cotovia rara
De rendas e de folhos
Com uma gargalhada nos meus olhos
Gazela livre, a correr entre prados
Ouvia guizos
De manadas, rebanhos
era mais uma corça a correr entre gamos.
.
Além, a poucos passos de um adulto
Ficava o claro ribeirinho
Com águas a cantar
Perfumava o caminho
E enchia de luz o meu menino olhar.
Que manhã tão alegre
Esvoaçava a brancura dos vestidos
alvas rendas
eram asas de borboletas
Nos meus oito anos coloridos.
Mas nisto, em corrida acelerada
Sem ver, ouvir, mais nada
Além do ribeirinho
Lancei-me no caminho
A distância das passadas primaveris
Que são as da infância
São menos largas
Que caminhar dos pais
De adultos passos...
Longo caminho
Saltar de passarinho
Que nada vê
E vai num burburinho
Procurar em remoinho
O que antevê
Mas o caminho
Sempre tem logros e ardis
Lamaçal, ratoeiras
Ciladas vis...
E o vestido branco
De asa a esvoaçar
Num instante ficou
De triste e denegrido
Só vestido de vasa.
E tive o meu castigo
Não merecido
Uma sova no espanto...
Ao longe cantava o ribeirinho
A reflectir o meu amargo
Inexplicável pranto.
Marília Gonçalves