Há por vezes encontros inesperados.
Quando, recém operada, mudei por fim do quarto envidraçado, para outro mais normalizado, embora ainda nos Intensivos, ali estava ela, Paulette Léa, senhora de olhar arguto mas doce, à espera que a médica terminasse a longa preparação, de ir expondo, sobre resguardo estéril, todas as peças do puzle da quimioterapia. Ela ali permanecia, sentada na poltrona, apreensiva.
Instalei-me silenciosa, na minha cama, talvez por receio de perturbar aquele temível e terrível ritual.
Cerca de um ano antes, minha filha, a primeira, da minha prole, tinha vivido as mesmas apreensões e os mesmos sobressaltos. Até ao presente distanciados.
No quarto de duas camas, espaçoso, um odor acre, pesado, ocupou cada espaço, quase náusea. A sessão durou precisamente uma hora, finda a qual, enrolado o resguardo, assim como o mais material, usado na sinistra sessão, foram cautelosamente colocados em saco hermético, a caminho do lixo clínico. O silêncio ganhou o quarto.
Pouco depois ousei um murmurado? comment ça va?, a que obtive pronta resposta: « merci, ça va, vous êtes gentille ».
Le silence gagna à nouveau la chambre, tant la crainte de fatiguer ma voisine, m’envahissait.
O silêncio ainda uma vez, encheu o quarto, da solidão dos enfermos.
Somente aquele cheiro acre, se impunha à nossa realidade.
A Paulette, tinha ar cansado, suavizado, pelo olhar claro e a alva cabeleira, que lhe emoldurava o rosto.
Passado tempo, estávamos a conversar uma com a outra.
Comecei a conhecer a sua História, que desvendava, sem enfâses, de maneira natural e clara.
A Paulette tinha 88 anos.
Precisamente a idade de minha Mãe, quando a vida lhe fugiu. Pouco tempo atrás.
A narrativa de sua história começou, quando ela rapariga tinha 18 anos e casou com o Jean.
Mas vou, contar o que lhe ouvi, mesmo se em ordem diferenciada, porque não posso deixar de me apaixonar, pelo personagem, que irrompeu, na minha vida de quase septuagenária, a vibrar de coragem.
Jean, era padeiro. Tinha pequeno quarto sobre a padaria, com janela para a rua.
Estávamos em plena 2° Guerra Mundial. Os nazis corriam as ruas, onde desespero e medo se acoitavam. A França invadida pelos nazis alemães, tinha, até à mais recôndita aldeia, perdido o seu apanágio e movia-se entre feras, silenciosamente.
Jean, com 16 anos, era corajoso e d’entre silenciados, decidiu, que duma vez para todas, se nascera com fala e capacidade de discernir, tinha que as aplicar em força activa.
Assim entrou para a Resistência. Na Resistência se quedou, até que decidiu, tomar o maquis.
Paulette ignorava porque paragens lhe andava o noivo. Receosa do que pudesse acontecer-lhe, confiava nas capacidades, deste, para que, soubesse, dentro do possível, permanecer em vida.
E o tempo passou, entre vicissitudes e racionamento alimentar.
Paulette, tinha encontrado trabalho.
Devido à guerra, os homens, tendo sido mobilizados, os empregos em diversos serviços, encontravam-se vagos.
Foi-lhe por isso fácil entrar como secretária, estenodactilografa.
Mas durante esses anos, nunca viu, nem soube de Jean.
Esperava, a esperança jovem e amante, tem muita força, tornar a vê-lo, quando o horror findasse e a Paz viesse.
No Dia da Libération, Paulette tinha ido de manhã para o trabalho. Inesperadamente, viu, irromper, ali, na longa espera, do seu emprego, Jean, alegre, feliz, arrastando-a para as ruas, onde trocaram o beijo, da sede da longa espera.
Jean, levou-a de Rua em Rua, de Praça em Praça, por onde custava avançar. O Povo Rei, descera às ruas e todos se abraçavam e beijavam, todos dançavam ao som de acordéon.
Aí, pela primeira vez, Jean ensinou Paulette a dançar. Na mais pequena rua, na mais ínfima Praceta, o Povo francês dançava e beijava.
Quando, as obrigações de cada dia, chamavam cada Cidadã, cada Cidadão, a retomar o trabalho com afinco, para reconstrução do seu País, Jean ofereceu-se voluntário, para seguir para a Alemanha, para a libertar dos nazis. Convicto, até a torrente lavar a derradeira peçonha.
Só quando A Paz encheu a realidade dos dias e amenizava um pouco, as dores de tantas mortes, tantas vidas barbaramente tiradas, de tanta humilhação, de tanto sofrer imposto pelos nazis, as conversas mais longas e aprofundadas tiveram, lugar.
Foi então que Paulette soube, que Jean, no seu quartito de padeiro, tinha sempre uma granada e uma pistola, escondidas antes de passar à clandestinidade.
Soube também, que o maquis, a que o marido, estava ligado, tinha esconderijo, na altura dos montes da garrigue? (mato do sul) numa gruta com o nome : A GRUTA DAS VIRGENS.
Numa risada, agora divertida, disse-me: Nunca soube, nem sonhei, que o meu Jean, andava, ali por cima da minha cabeça!
Mas para além, do espirito cívico, da convicção de cidadão, Jean tinha sido um verdadeiro Homem.
Ao entrar para a Resistência, Jean, exímio dançarino, de danças de Salão, tinha DEZASSEIS ANOS.
NARRATIVA DE
Marília Gonçalves
Libération é obviamente, Libertação em português, mas, Libération, na voz de uma francesa Resistente, tem tal conteúdo, que se lhe não pode escapar. Tal como o 25 de Abril, dito por portugueses, tem ainda o perfume inacabável dos cravos e da Alegria.
Marília
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