Paulo de Carvalho : E depois do Adeus
Música: José Calvário
Letra: José Niza
(vencedora do festival da canção de 1974)
Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.
Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder
Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci
E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...
E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós
Nota:
Esta canção serviu de senha de início da revolução de 25 de Abril de 1974********************************************************************************************
Amanhecera chuva. Tempo de aguaceiros que o sol furava de longe em longe.
Isabel desceu do carro eléctrico,ainda na mente fiapos dos pensamentos com que vinha entretida.
Bateu-lhe a chuva, cruzada sem defesa possível, já que o vento remoinhava cinzento.
Isabel avançava a custo, decidida curvava o dorso, a mão a fechar-lhe a gabardina sobre os joelhos. Inútil chapéu de chuva que quase se lhe empecilhava nas pernas, chegou quase a amaldiçoar a bodega da carteira. Sempre gostava de saber porque diabo andamos sempre com esta coisa atrás, mesmo quando não faz falta.
Enfim falta sempre podia fazer, que lá estavam as papeladas e algum dinheiro, essa bodega que nos leva debaixo de qualquer tempo aonde não teríamos vontade de ir.
Dançou-lhe nos olhos a cara do chefe. Estupor. Sempre a dissertar sobre tudo com aquele ar vitorioso de quem alcançou a verdade suprema.
Ia na rua do Loreto, nessa Lisboa ainda sem computadores do inicio dos anos 60.
Ainda bem que não tinha filhos. Não por ela, que bem gostaria desse afecto do sangue, mas por eles, coitados num país tão parado, que parecia ele também exposto a torrencial chuva e cruzados ventos.
Estava à porta, havia chegado automaticamente sem dar por isso.
Começou a subir a escada com passadeira a abafar-lhe o som dos passos. Bom dia... encaminhou-se para a secretária enquanto a voz dos colegas lhe retribuíam a saudação.
Venho atrasada por causa deste maldito tempo...o chefe entrou: Então Dona Isabel, deram-lhe cuidados os pequenos ? algum com sarampo, não? ironizou. Em voz baixa Isabel resmoneou ? filho da....
e sentada à secretaria começou mais um dia de trabalho.
Na papelada que lhe corria pelas mãos foi passando a manhã.
Vens almoçar Isabel ? indagaram os habituais companheiros de mesa, Chegaram à rua o céu era uma planície azul com manchas brancas a deslizar velozes.
Que tens hoje que não estás nos teus dias? Não sei , nem sempre a gente sabe o que lhe vai por dentro,mas vamos comer que isto logo passa.
Entraram no restaurante. Estava cheio. Ao fundo uma mesa estava prestes a vagar. O empregado fez-lhes sinal e aguardaram.
Que é que vais comer ? Nem sei bem, Uma coisa leve... olhe traga-me uma omelete e uma salada de alface. Temos grilo! gracejou António a ver se melhorava o ambiente. Isabel percebeu a intenção do colega e sorriu por simpatia, mas por dentro os aguaceiros tornavam-lhe o horizonte mais escuro ainda.
Acabada a refeição retomaram o trabalho. Passou a tarde, mas o semblante de Isabel não se desanuviara.
Chegou à rua, Apanhou o eléctrico decidida a ir direita a casa da avó.
Subiu a escada até ao segundo andar, bateu à porta, voz vinda de dentro : aí vou...
a porta abriu-se... és tu filha!... Minha linda avó, a avó mais bonita do mundo. Ora, tarde piaste... agora que estou velha todos me acham uma lindeza. Isabel sorria, Aquela ladainha era por demais conhecida, Quando era nova é que isso tinha feito falta agora...
Senta-te cachopa, que vens a deitar os bofes pela boca.
Isabel dera um xoxo à avó e sentou-se. Vens a novidades não é filha? Pois é... mal consegui passar o dia.
Prenderam-no outra vez! com mais de sessenta anos e ainda têm medo dele... para onde o levaram?
-Para o Aljube, está incomunicável.
Andaram aqui em casa, reviraram tudo.
-Acharam alguma coisa? Mais me admirava que achassem dinheiro, mas não, não acharam nada, que a Julieta amandou o livro que ele andava a escrever pela janela da casa de banho... recuperar as folhas todas é que vai ser um caso sério, teremos que pedir aos vizinhos se dão licença. Bom que nem desconfiem do porquê.
Isabel com a cabeça sobre as mãos estava estática. Talvez lhe corressem pela cabeça milhares de pensamentos, ou o cansaço e o espanto a petrificavam.
É preciso ir a notícias...
Vou a casa do Gabriel a ver se sabe qualquer coisa e a seguir volto cá, hoje durmo aqui.
Ó minha filha ainda bem, ia ser difícil ficar em casa só com a Julieta, coitada que levou um susto, mas não perdeu o norte, mesmo nas barbas deles fez voar o livro, ainda bem que não o acharam, o teu avô é que não percebeu nada, Parecia admirado, mas disfarçou.
Que será que lhe estão a fazer?
Isabel olhou a avó.. malditos!... é isso que eles querem! prendem um e torturam todos, e o preso duplamente que sabe a aflição da família.
Descanse avo seja como for amanhã vamos lá.
Isabel saiu na noite molhada e fria. Talvez o frio estivesse dentro dela a pensar no avô numa masmorra, no segredo ou com algum pin-ping de água a furar-lhe os miolos, mas o avô era resistente, até ao Tarrafal tinha resistido, era mais uma provação, mais uma dor aguda nas obscuras páginas de história que uns bandidos iam escrevendo em Portugal e no sangue do povo.
Portugal, o que era Portugal ? Uma localização geográfica? um povo que consente? um governo imposto? um punhado de resistentes? quem és tu Portugal ?
Se me pudesses responder talvez esta ansiedade que me aflige não doesse tanto.
Chegara à rua de Gabriel, entrou na escada bateu à porta do rés-do-chão, uma garota veio abrir, Olá Isabel, ó mãe está aqui a Isabel. A mãe da garota que aparentava os trinta anos veio à porta. Entra. Isabel entrou, seguiram o corredor até à cozinha , sentaram-se num banco e a Manuela assim se chamava a dona da casa, disse: sei que prenderam o teu avô. O Gabriel foi a notícias. Já jantaste alguma coisa ? e sem esperar resposta tirou da panela que estava em cima do fogão, um prato de sopa de feijão com hortaliça. Isabel aceitou de boa-vontade o que de tão boa vontade lhe ofereciam. Reconfortou-a a sopa, mas dentro aquela voz a falar-lhe da masmorra do avô no escuro no silêncio, se não fosse pior. Malditos, malditos cães !
Quando Gabriel chegou agarrou-lhe as mãos com afecto : tens um avô que é um homem, não se contenta em usar calças.
-Eu sei é um resistente corajoso e persistente, sabes alguma coisa sobre ele? Está no segredo. Por hoje não saberemos mais nada.
Trata de ir para casa, vê se tranquilizas a tua avó. Vejam se conseguem dormir, que amanhã é novo dia.
Apareço em tua casa a horas de ir ao Aljube, tenta não pensar demais por hoje... torturares-te não adianta nada.
-Tens razão, vou indo, senti-me muito bem aqui em casa com a tua filha e a tua companheira.
Vou acompanhar-te a casa.
-Não vale a pena, num instante chego. Tu também estás cansado e amanhã vais trabalhar. Pois sim, mas vou à mesma acompanhar-te, fico mais descansado. Deu um beijo ao de leve à companheira, sorriu à filha e foram.
Isabel tinha um grito preso na garganta como se um pássaro quisesse voar e não pudesse.
Quando chegaram ao prédio despediu-se do amigo. Viu-o afastar... fez um aceno com a mão e entrou na escada. Às escuras sem barulho foi subindo. Com o nó do dedo bateu levemente à porta, desta vez o avô não viria abrir, apareceu a avó com rosto doce e triste. Abraçou-a e ficaram agarradas largos minutos.
Quando se aconchegou nos lençóis, um perfume campestre a rosmaninho, a alecrim invadiu-a, enquanto debaixo do cobertor de papa, o calor pouco a pouco ia aumentando. Sentiu aquele leve torpor que antecede o sono. Porém num sobressalto ergueu-se, som estranho fino, quase imperceptível. saltou da cama pé ante pé avançou pelo corredor, encostou o rosto à porta da avó... o mesmo som se fazia ouvir, agora mais forte, ampliado pela proximidade. Chamou a avó: avózinha está bem? posso entrar ?
correu a porta que deslizou na calha do solo, a avó tinha os olhos cheios de lágrimas, as faces molhadas. Ó avo então está aflita... não filha, é que estou preocupada! e a noite parece não querer passar.
Isabel abraçou a avó, e ali ficou nos seus vinte anos a pensar no avô, no namorado que já não tocava viola para ela aos serões, fugira à guerra, andava por França coitado!... A limpar latrinas, Trocara a faculdade, por aquela maldição, mas pelo menos estava vivo e não vivia as atrocidades da guerra.
Pobre país, onde cada história era uma página amarga, onde para andar de consciência limpa se tinha de renunciar à alegria mais simples e ao direito a vida própria.
Vai descansar filha vê de dormes que amanhã também o trabalho te espera.
Marília Gonçalves
Portugal ressuscitado
Ary dos Santos
E agora, o povo unido nunca mais será vencido,
Vi nas bocas, vi nos olhos,
E agora, o povo unido nunca mais será vencido
Nunca mais nos curvaremos
E agora, o povo unido nunca mais será vencido
Seara rubra d’esperança
onde a foice de amanhã
há-de cortar pão futuro
papoilas tuas irmãs
gritam certezas nascidas
nos olhos da madrugada
a enflorescer Abril.
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