Sidónio Muralha
Último Abismo
Que voz é esta que o silêncio habita
que nos sufoca, nos prende a vontade
que vozes soam na nossa alma aflita
entre o segundo e a eternidade?
À beira do abismo impenetrável
quando se cala o brilho dum olhar
cambaleantes sobre o insondável
nós olhamos, olhamos, sem conseguir pensar.
Em nosso semblante a transparência finda
a cor da parca imunda penetra-nos a face
ou é o silêncio que nos habita ainda...
E nenhum grito há que nos liberte
nem palavras nem prantos nem sorrisos
ante a verdade gélida e inerte.
Marília Gonçalves
ao meu Pai
Onde está o campo antigo
os meus infantis montes
quando eu ia contigo
escalar a poeira
de abertos horizontes?
Marília
à memória de meu pai, minha ternura
Sou ainda a menina
que levavas
a passear contigo
agora não te encontro
sinto-me sozinha
meu amigo.
Da prisão politica de meu Pai em Caxias
Se soubesses o que é
para a criança
ver o pai
ao pé dum carcereiro
a saber que o pai
apenas ali está por amor
que tem ao mundo inteiro!
Se soubesses o que é para a criança
ver o pai ao pé dum carcereiro...
Marília Gonçalves
Pai, à tua mãe
À mãe de meu pai, minha lembrada avó
meu pai nasceu acidentalmente perto de Huelva
em
Zalamea la Real
Poema a Maria
Quanto muro quanta casa que paredes
lavaste com teus olhos fontes rios
quanto chão regaste com as sedes
que te levam mundo fora, além navios
quantas urnas de sal perdido sol
caiaste com teu leite
quanto silêncio se fez no rouxinol
do flamenco aceso no teu peito?
Que trilhos, que caminhos percorreste
no obscuro tempo verdes anos
que em alva cabeleira converteste
e não lhe chamem erros, desenganos
porque hora a hora mulher em ti crescente
livre do sono dos ancestrais decanos.
Marília Gonçalves
mais estórias na História
No DESPERTAR DO 25 ABRIL DE 1974
Naquela manhã idêntica a tantas outras, meu irmão saía de casa para ir para o Liceu. Despediu-se do pai que nesse momento começara a barbear-se. Deve como de costume ter-se despedido da avô e da mãe e começou a descer as escadas do 3° andar que o separavam da rua. Precisamente no momento em que agarrou a maçaneta da porta da rua, parou surpreendido e assustado. Um grito indescritível ecoava pelas escadas, batia contra as paredes com tal força que de imediato percebeu tratar-se de grito do pai!
Subiu as escadas de quatro em quatro, a uma velocidade a que o medo obrigava (nosso pai era muito doente e por vezes havia cenas semelhantes em casa que não anunciavam nada de bom e que acabavam muitas vezes na ida de nosso pai para o hospital.
A porta de casa abriu-se ao seu chamamento. Qual não é o espanto quando depara com um pai que exultava de alegria explosiva e comunicativa!
Ora o que se tinha passado era o seguinte: enquanto fazia a barba, meu pai de transístor aceso ouviu a transmissão da noticia de que em Portugal estava a dar-se um golpe de estado. Para quem sempre acreditara na possibilidade da queda do regime salazar/caetano, nunca lhe passou pela cabeça que o golpe viesse ainda de forças mais reaccionárias, Para ele era límpido! o Golpe era de esquerda e era para libertar Portugal e seu povo. Para quem na altura se encontrava exilado desde 1962, era o concretizar do sonho, da espera de cada dia
E foi uma ronda de alegria infinda que encheu a casa
A mãe, eufórica até mais não, precipitou-se para o quiosque mais próximo onde foi comprando todos os jornais que surgiam procurando noticias mais aprofundadas.
Eu em Faro, infelizmente, como meus pais não tinham telefone (nem todos os exilados políticos tiveram exílios dourados, como foi o caso de uns quantos) não podia comunicar com eles e partilhar assim o que apesar de pouco íamos obtendo de notícias vindas de Lisboa!
A minha avó materna, que já vira muito e muitas vezes se decepcionara com anúncios logrados da queda do regime, mantinha-se num estado de fleuma, aguardando confirmação e concretização do acontecido
Mas foram dias de exuberância e excitação, de preparativos para a vinda de meu pai a Portugal, que as dificuldades agravadas pela sua doença complicavam e assim so a 4 de Maio o recebemos em Lisboa onde chegou de camioneta. Família e amigos ostentavam cravos vermelhos e eu tinha uma espécie de xaile vermelho pelas costas que cruzava sobre o coração
Assim que as aulas acabaram chegou a família toda e foi o Verão de 1974 o reencontrar de uma vida repartida por todos e partilhada por amigos e povo que começava a colher as primeiras conquistas de Abril, que dia apôs dia se concretizavam!
Num país em que os Militares eram o nosso orgulho e que passavam a fazer parte da grande família portuguesa
Por toda essa inesquecível alegria, pela fraternidade, pelo nosso olhar límpido e seguro e por quanto de bom e humano Abril nos trouxe VIVA O 25 DE ABRIL DE 1974 PARA TODO O SEMPRE
e VIVA A VIDA que o 25 de Abril compensou de quanta agrura possamos ter vivido anteriormente
Marília Gonçalves
(nota- enquanto escrevi este breve texto, todos os que partiram e que choro, meu pai, minha avó minha tia ( a viúva de Alex, Alfredo Dinis (assassinado pela PIDE) o meu avô preso 24 vezes que resistiu ao Tarrafal e tantos outros, estiveram aqui, presentes e vivos, tão vivos como o estavam no 25 de Abril de 1974, uma profunda alegria me acompanhou durante estes momentos de escrita! Essa alegria que foi de todos, durante esse período único na História da Humanidade)
Afinal os Homens podem ser positivos e bons!
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