Que saudades avózinha
dos contos que me contavas
quando eu ainda menina
nada sabia do tempo
e soltava minhas asas
entre sonho, pensamento.
Na tua voz me embalavas
os contos brandos macios
na voz em que mos contavas
era entre grave, serena.
A tua mão branca fina
poisava sobre a morena
cabeleira da menina.
Sentada numa cadeira
feita por teu irmão Zé
que conhecia a maneira
de transformar de moldar
com arte, sabedoria,
dos que domam a canseira
a fazer de noite o dia
sentada nessa cadeira
teu conto era mais verdade
havia na brincadeira
algo de seriedade.
No agrado de meus olhos
ao sorrirem para ti
não inventavas passado
o futuro era ali.
Presa nas tuas palavras
no azul que havia em ti
brincavam as tranças loiras
que ainda tens na memória...
teu conto era a vida inteira
tua vida, minha história.
Os anos foram passando
mas vejo o mesmo sorriso
a pairar sobre meu leito...
Meu pequeno paraíso
no teu quarto branco estreito
onde havia o mais preciso.
Ainda hoje estás sentada
na mesma eterna cadeira
embalo da meninice
a minha vida primeira:
A ternura do sorriso
que voltavas para mim
transportou-me a sábio mundo
onde o sonho principia
e começa o imaginário.
A volta do tempo ido
é que me trouxe ao que sou
entre o riso ou o gemido
o meu olhar não mudou.
Vejo tua mão na minha
acariciares-me a testa.
Avózinha
Ó minha querida velhinha
ser menina era uma festa.
Agora mulher e mãe
a tua lembrança doce
o teu vulto ao pé de mim
trazem meu dia de hoje...
A fazer-me ser assim!
à minha Avó materna
Lisboa, na casa antiga
ali à Ponta Delgada
havia uma rapariga
a mais velha da filharada
que tinha compridas tranças
atadas com verdes sonhos
os irmãos (eram crianças)
descuidados e risonhos.
O pai era marinheiro
sempre que ia para o mar
não falava da partida;
mas queria sempre ao chegar
a família reunida
sobre o cais a acenar.
Na casita tão antiga
onde havia a rapariga
com sonhos por naufragar
a mãe era boa amiga,
partiu para não voltar...
Também quis ser marinheira
da nau onde parte a vida
que se vai de tal maneira
que a nau só tem despedida.
Nunca mais volta do mar...
Não se lhe pode acenar.
Marília Gonçalves
À Querida memória de minha Avó
No teu quarto minha avó
havia um mundo secreto:
perfume de pão-de-ló,
rendas de bilros no tecto,
na mesa de cabeceira
o candeeiro redondo
duma luz opalescente...
nunca soube se essa luz
era luar que descia
de teu olhar sorridente.
Tinhas os olhos azuis...
isso de estrelas de luas
perdia-se facilmente
na escuridão que há nas ruas
para vir suavemente
habitar ao pé de ti...
e eu, sorria contente
do sonho que aí vivi.
Ah, o mundo da infância
nos cuidados da avó
deslizava brandamente.
Também no teu quarto havia
armários e gavetas
e a caixa de costura
cantos de prata esculpida
que teu irmão carpinteiro
inventara para ti.
Na magia do teu quarto
acordavam meus sentidos
havia um cheiro encerado
nos móveis adormecidos.
O meu sentir esfuziante
bem desperto e acordado
descobria tua essência
no gesto de cada instante:
havia uma transparência
uma mágica ternura
trazendo à nossa presença
o que parecia lonjura.
Tudo era compreensão
no espaço do meu sonhar...
sobre minha, tua mão
era canção d’embalar.
Desapareciam os medos
iluminava-se a sombra.
Adormecia em teus dedos
minh’alma branca de pomba.
Marília Gonçalves
A dor não é colorida
não tem peso não tem voz
por isso não há medida
pró que trazemos em nós
Marília
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