A pátria é nos lugares onde a alma está acorrentada.
Voltaire
UM ARTIGO DE BAPTISTA BASTOS
Quem diz que não há liberdade de Imprensa em Portugal ou é mentalmente indigente ou está a ser o serventuário de uma estratégia política repugnante. Os nossos problemas são outros e muitíssimo mais graves. Não trago o retrato de José Sócrates na carteira...
Quem diz que não há liberdade de Imprensa em Portugal ou é mentalmente indigente ou está a ser o serventuário de uma estratégia política repugnante. Os nossos problemas são outros e muitíssimo mais graves. Não trago o retrato de José Sócrates na carteira, execro o seu comportamento, detesto as malfeitorias que tem feito às classes mais baixas da população. Mas é quase impossível ele dispor de um poder que justifique o controlo da informação. Talvez o desejasse. Talvez manifestasse, particularmente, esse projecto. Mas está à vista que a campanha da "asfixia democrática", com incidência sobre a comunicação social só não é um disparate porque é uma tese aberrante.
Historicamente, o poder político sempre almejou dominar os meios informativos. As alternâncias (o rotativismo em que vivemos, importado do século XIX, com escassas alterações) têm determinado as alterações nos media. Sei muito bem do que falo. Eu próprio, depois de Abril, no "Diário Popular", numa direcção de Pacheco de Andrade e de Botelho da Silva, fui taxativamente proibido de "escrever artigos políticos." O assunto foi de tal monta que tive de pedir guarida no "Diário de Lisboa", cujo director-adjunto, Fernando Piteira Santos, me apoiou durante o tempo que ali publiquei.
A minha experiência, já aí, vinha de longe. E a intervenção da Censura salazarista deu cabo, limitou, impediu a publicação de inúmeros textos meus. À luz da perspectiva de hoje, muitos, a maioria, desses cortes fazem sorrir. Mas os censores não eram os cretinos fixos que se faz crer. Apenas como não havia nenhum código censório, os fiscais da prosa, quando a não entendiam - cortavam.
O que está actualmente em rodagem é uma impressionante manipulação intelectual dos portugueses, com a cumplicidade de alguns cavalheiros que deviam ter vergonha do que dizem.
Até Paulo Rangel (afinal candidato à chefia do PSD) não teve pudor em falar, no Parlamento Europeu, da "falta de liberdade de Imprensa" em Portugal. Disse-o e não corou. Devo dizer que tinha de Rangel uma ideia de homem sério. Modifiquei-a. O Executivo Sócrates pode, e deve, ser acusado de tudo. Agora, de conspiração maquiavélica para acabar com a livre opinião parece-me, verdadeiramente, um excesso. E, a não ser que seja informado do contrário, do que sei é que os jornalistas não têm sido impedidos de coisa alguma. Até de escreverem mal.
Claro que a liberdade de Imprensa, observada como totalidade é falaciosa. Contudo, é uma batalha exaltante pela qual jornalistas e leitores se têm de bater com denodo. E nem sempre saem vencedores. Deixem-me contar-lhes duas histórias verídicas. Há anos, o nome do grande jornalista Claude Julien foi indicado, unanimemente, pelos seus camaradas, para exercer as funções de director de "Le Monde Diplomatique". A decisão não encontrou aquiescência em Hubert Beuve-Mery, fundador de "Le Monde" e detentor de grande poder. Este acusava Julien de ser terceiro-mundista, o que poderia afectar o prestígio de "Le Monde Diplomatique", e recomendou nova eleição. E assim se fez. Outro nome foi o vencedor tangencial.
Um dos grandes nomes do ofício de jornalista é Harrison Salisbury. É, ou foi, ele já morreu há muitos anos. Mas o episódio que conto é exemplar da atenção que devemos todos ter sobre a liberdade de informação. Durante a guerra do Vietname, Salisbury começou a receber, pessoalmente, provas de que os aviões norte--americanos estavam a atingir, premeditadamente, alvos civis. A princípio, a direcção do "New York Times", onde o jornalista trabalhava, aceitou colocar notícias esparsas e escassas nas páginas pares e interiores do jornal. Até que a importância e a natureza da informação fez com que chegasse à primeira página.
Mesmo assim, era preciso o comprovativo do próprio jornal. Foi então que Harrison Salisbury recebeu um convite pessoal do presidente Ho Chi Minh, para visitar Hanoi e as áreas atingidas. Naturalmente, havia centenas de jornalistas norte-americanos no Vietname. Porém, pela primeira vez na história das guerras, o presidente de um país invadido dirigia um convite individual a um jornalista procedente do país invasor. No maior segredo, Salisbury viajou até Paris e, dali, para Hanoi. E testemunhou os horrores de uma tragédia que feria a honra dos Estados Unidos. As reportagens do grande jornalista constituem um modelo de dignidade e de decência e fazem parte da selecção mais rigorosa de textos de guerra.
Alguns anos depois, um jornalista português foi a Nova Iorque. Para um jornalista, ir a Nova Iorque e não visitar as instalações do "New York Times" seria blasfémia. E assim foi. Chegado à Redacção do jornal pretendeu conhecer Harrison Salisbury, "apenas para lhe apertar comovidamente a mão", como disse. O embaraço dos hóspedes foi tão evidente que o português, curioso e teimoso, insistiu: "apenas para lhe apertar a mão." Enfim e encurtando razões: Salisbury, um dos mais honrados profissionais de Imprensa de todo o Mundo, estava colocado na secção de Necrologia, num saneamento dourado que o seu imenso prestígio não conseguira evitar.
Isto para repetir que a liberdade de Imprensa nunca é um bem totalmente adquirido. E, também, para advertir aqueles que falam em falaciosas asfixias que estão a ferir a própria consciência da liberdade. O que é a sua mais perigosa ameaça.
b.bastos@netcabo.pt
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