ENTRE HORROR E TERROR um DIA AMANHECEU ABRIL
Uma crónica de Manuel António Pina
«Um negócio obsceno
Os 38 apartamentos de luxo construídos no edifício que foi a sede da PIDE, em Lisboa («um edifício com história» que, diz a imobiliária, se mostra «novamente orgulhoso da sua herança») estão a ser vendidos convidando os compradores a «reviver tempos de esplendor» e um passado de «luzes a reflectirem-se nas pratas do aparador e nas vestes de gala de cavaleiros e damas».
A suja história de sangue e horror do edifício e os gritos de dor de milhares de portugueses que as «velhas e nobres paredes com um metro de espessura» abafavam, são agora, pelo turvo milagre da usura, uma memória doirada, transbordante de festas e de bodas, e de duques, príncipes e embaixadores. Num país onde o dinheiro compra tudo, até a memória colectiva, os antigos torturadores tornaram-se «copeiros e gentis homens» ao serviço de ricaços e recém-chegados ansiosos por reconhecimento. Bem pode o poeta clamar que «com usura homem algum terá casa de boa pedra» e que «com usura, pecado contra a natureza,/ sempre teu pão será rançosa côdea»; os usurários não têm pesadelos nem temem fantasmas. O esquecimento é o seu «estilo de vida».
Rua António Maria Cardoso 1911 (sede da PIDE) (Lisboa
Ai, que se o passado nos não serve de lição.....
A ESTÁTUA
É um pedregulho cinzento
plantado num pedestal.
Em volta assobia o vento,
logo atrás ronda o chacal.
No bastião de cimento
a meio dum chavascal
está vigilante e atento
um monstruoso animal.
Um pregador de convento,
oculto no canavial,
administra o sacramento
àquele aborto infernal.
O sinistro monumento
é cópia do original
que se instalou em S. Bento
a desgraçar Portugal.
Segui brechas sombrias de ritmos
Sulcadas na mbila dum povo alegre
Segui flautas, frémitos, pausas, silêncios...
Timbres de vozes inchadas de vertigem
Segui célere,
Ritmos do meu povo
Timbres de vozes isoladas
E no verso,
Um povo cruzado em favos.
Segui brechas sombrias de ritmos
No instinto e na origem
Timbres do meu povo
Segui vísceras,
No ventre duma lágrima
ténue, e devagar...
Ritmos do meu povo
Segui brechas sombrias de ritmos
E nos escombros da vida dum solo
Encontrei uma palavra,
Encontrei uma penumbra
Dum menino alegre colorido de lágrimas
Com um tambor de nada ás costas
Baquetas de ferro em punho e carnívoras
Naquele menino da pátria feliz!
Naquele menino feliz cruzado de sonhos!
Naquele menino feliz pousado de canto e que canta!
Ritmos do meu povo,
Segui brechas sombrias de ritmos.
Noé Filimão Massango
As Primeiras Luzes
Vozes
Cada poeta segue seu caminho
o verso impera em urna virginal
misto de sol, de mosto, de espinho
incenso ou essência matricial.
Afunda o olhar na vaga
em que o poema rebenta
essa incerteza que alaga
a memória poeirenta.
Vai no caminho de tudo
irmão do que é e não é
despir em cada som mudo
a origem da maré.
Cada poeta segue seu destino
como escola interior à luz desperta
voz a subir do tempo de menino
até à semi luz da descoberta.
O verso impertinente voga verde
amadura palavras e sentido...
a urna vai enchendo e nada perde
além do todo que foi já perdido.
Cada poeta é só mais uma imagem
fuligem de palavras ou vindima
a semear os versos da bagagem
que leva vida abaixo, vida acima.
Mas de cada colheita acontecida
o mosto a latejar é sementeira
do seu olhar poisado sobre a vida
a gritar rubra como uma fogueira.
Marilia Gonçalves
POEMA
RADIOGRAMA
As sirenes do mundo soltam arrepios:
Espanha permanece envolta
em labaredas
de fogo posto.
Os incendiários
romperam pelo sul.
Trouxeram beduínos,
tuaregues
e tribos malfazejas.
À frente, a comandar,
um celerado
promovido, de urgência,
a general.
De toda a parte acorrem forças,
braços, ombros e peitos denodados,
pedregulhos de vontades
a erguer um muro contra o ódio.
Só que é já impossível romper o cerco
que asfixia e esmaga a liberdade.
A argamassa não consegue endurecer,
a muralha cede e desmorona-se
em homens, em mulheres, em crianças,
esquartejadas por sabres e metralha,
espalhadas pelos campos
em sementeiras de sangue,
chagas indeléveis
rasgadas no dorso de Espanha,
rolando nas planícies e montanhas,
e afogando-se nos rios do tempo.
Todavia as sirenes continuara
a alertar o futuro.
Carlos Domingos
Intento
Ao encontro da vida vem a ave
traz raízes de sonho sentimento
a poisar sobre a árvore
ao perfume do vento.
anoiteces os olhos e não vês
abres as mãos onde escorreu água
na sequência de intérminos porquês
vives a sede com sabor a frágua.
Uma canção faz ninho nos teus lábios
mas tu só vez sede sem resposta
podem nascer ao teu redor mil sábios
a tentar subir a tua encosta
que perderão a força, firme gesto
tu vais permanecer na escuridão
como Danaides a encher o cesto
do líquido a espalhar-se pelo chão.
O licor do saber feito de esperança
não mata sede a lábios que se negam
um ano quase faz uma criança
do encontro do óvulo e do sémen.
Os templos de colunas imortais
não são apenas história são intento
a narrar outras eras mas não mais
que o furor que é a chuva ou é o vento.
Assim no pedestal de eterna herança
se vão erguendo olhos que nos viram
como a cravar no chão futura lança
ao exemplo de vidas que ruíram.
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