Em Frente pela PAZ Universal
Nas Consequências da Guerra
Encontrei-a na esplanada dum café interior dum grande hospital parisiense.
Chamou-me a atenção, o cansaço marcado no rosto a contrastar estranhamente com a doçura do olhar. Jovem? não era.
Sem saber como, estávamos a conversar as duas.
Sempre com o mesmo ar, começou a contar-me sua história, Já que ambas com vários exames marcados nos encontrávamos no intervalo entre duas consultas.
Ela viera há anos, fugida à guerra, da Bósnia. Trouxera com ela dois filhos um rapaz e uma menina, no momento do nosso encontro em plena adolescência. Olhava-a, escutava-a e nunca consegui atribuir-lhe idade. Pela dos dois filhos depreendi que se situaria entre os quarenta ou cinqüenta, mas aparentava mais, se não fosse aquela persistente doçura no olhar.
Contou-me que do lado da mãe, toda a família tinha sido morta. Não deu detalhes e eu não lhos pedi. Escutava apenas, impotente testemunha duma dor infinda e em silêncio quase religioso continuei a ouvi-la. Viveram em caves de prédios bombardeados, comendo o que podiam, escondidos sempre. No exterior lá em cima ouviam-se as bombas e os combates. Os filhos nessa altura pequeninos; ia ela fazendo frente ao terror próprio e ao das crianças . Certo dia viu apavorada entrar um grupo de homens pelo esconderijo adentro. Disse-me que tiveram sorte, eram do bom lado, que nada lhes fizeram de mal. Mas esse incidente veio aumentar o pavor em que viviam, humanos ratos a viver em tocas, que a maldade dos homens obrigava. Contou- me mais o estado de espírito do seu pequeno grupo familiar, sem nunca detalhar os acontecimentos vividos por ela e pelos filhos.
Pudor ou incapacidade de reviver através de relato doloroso as peripécias trágicas que a guerra lhes impusera. Contou em seguida que o desespero a fez procurar boleia para fugir com as crianças e que por sorte um autocarro que vinha para Paris, os deixou entrar e os trouxe para a capital francesa
Depois acabou dizendo que tinha a seguir uma sessão de choques elétricos, e que no final, perto das cinco a filha a viria buscar visto que não a deixavam sair sozinha depois do tratamento, que segundo o que me disse era para a vida. Mas disse-me que o estado da filha era muito pior que o dela, e que vivia enclausurada em casa, saindo apenas quando a isso por algum motivo de força maior era obrigada.
Sem palavras para a reconfortar, pelo dito e pelo não dito, limitei-me a deixar que a minha expressão lhe manifestasse tudo o que me ia por dentro.
Ao fim do dia, acabados também os exames para que viera, fui encontrá-la no mesmo sítio, sentada a uma mesa com a cabeça apoiada nas mãos, cotovelos sobre a mesa...
Estava ali à espera da filha que não aparecia e não sabia como voltar para casa. Estava pronta a oferecer-me para que eu e meus acompanhantes a levássemos a casa. Mas o olhar dela ensombrou-se como temendo a oferta que pressentia. Lesto o pensamento levou-me a tentar pôr-me no lugar dela. Fugida à guerra, com perturbações nervosas aparentemente irreversíveis, tanto nela como na filha, as confidências que me fez, por brusca simpatia, cediam ao medo que a acompanhava sempre. A casa era o abrigo desconhecido de todos, o tecto tranquilo, era possível que nessas circunstâncias, preferisse manter no silêncio o local onde ela e os seus abrigavam sua dor e o terror das fugas e perseguições.
Ali continuava à espera da filha, que não chegava, o que a afligia mais ainda. Não sabia como fazer, foi telefonar à filha que acabou dizendo que não se sentia bem e era incapaz de ir buscar a mãe
A aflição crescente em que a via, sugeriu-me que talvez fosse possível, se ela fosse falar com a equipa que a seguia, que eles chamassem um taxi que a levaria até à porta de casa, o que,por conseguinte não a obrigava a nenhum esforço. e assim foi.Fez-me um ultimo sorriso, pálido e ansioso, receosa pelo estado da filha, eu, ali fiquei na comunhão daquela dor para ela eterna, fazendo que um tropel de perguntas se seguissem no meu cérebro.
Mais amante da PAZ e contra qualquer guerra ofensiva, vi diante de mim erguidos e terríveis, os efeitos que as marcas indeléveis da maldade humana, levada ao paroxismo, por guerra sem razão,
Causa de tanto sofrimento a projectar-se no futuro de quem a viveu e consequentemente no futuro de cada ser humano, já que habitantes todos do mesmo Espaço a Terra, somos companheiros de viagem e inevitavelmente o bem e o mal de cada um recai sobre o todo, sobre cada ser humano numa total e profunda quebra de harmonia o que tornará a sociedade mais violenta e mais desumana.
Muitos fogem a esta realidade como se o não olhar e a fuga os protegesse, quando afinal apenas prolonga o gelo, o frio social que aniquila o que pode haver de bom em nós, e nos torna cúmplices silenciosos do crime e responsáveis de não assistência a pessoas em perigo, e esse frio da indiferença, instala-se corrosivo no nosso interior e vai ganhando terreno no aniquilamento dos nossos sentimentos, destruindo a nossa afectividade e a nossa capacidade de sentir, transforma-nos em robôs não humanos, de que apenas mantemos a aparência. Ignorando o sofrimento alheio, que é afinal o dum irmão, semelhante, que tinha à partida a mesma vontade de tranquilidade e respeito, de PAZ, que merece ou deve merecer cada um; é um crime voltado contra nós mesmos, porque nos mata interiormente e reduz ao silêncio a nossa capacidade de apreciar o belo o bom e o que é justo, e afasta para sempre a alegria e a capacidade da partilha numa anestesia triste e monótona das nossas existências, por isso muito mais pobres distantes e solitárias.
Marília Gonçalves
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