Livro de Poesia de Marilia Gonçalves
à venda
na
Librairie Lusophone
Heitor 22, rue Sommerard 75005 Paris Tel: 01 46 33 59 39 Fax: 01 43 54 66 15.
LATITUDES
A Poesia como
Revelações da poetisa Marília Gonçalves
Declarações recolhidas por D. Lacerda
Latitudes — Quando começou a
escrever poesia a sério e em que
circunstâncias?
Marília Gonçalves — Engraçado,
pois, na verdade, nada tenho dessa
época infantil dos primeiros versos.
Aliás tudo o que escrevi, tal como
tudo o que encheu minha infância,
ficou na Amadora quando vim para
aqui. Viemos quando tinha catorze
anos; a casa foi desfeita - o interior
entenda-se - cerca de dois anos
depois e nada mais tornei a ver, mas
os primeiros versos foram escritos a
respeito de meu nome, aos dez
anos.
Quanto a poesia a sério, partindo
do princípio que o termo quer dizer
o que parece, só muito mais tarde
depois de desbravar, sentir e pensar
as palavras, isto quando o tempo
começou a pertencer-me um pouco
aí é que me que me dediquei verdadeiramente
a escrever.
Latitudes — Qual a finalidade de se
instalar em França?
M. G.— Finalidade não sei, mas o
motivo esse foi da primeira vez em
menina o fazer frente às adversidades
surgidas com a prisão política
de meu pai e o despedimento do
ENTREVISTAS/ENTRETIENS
Marília Gonçalves é uma das vozes poéticas mais vibrantes
e puras que conhecemos entre os portugueses de
França. Achando-se desde muito jovem, por relações de
família, envolvida na luta pela emancipação das camadas
sociais desprotegidas, os seus versos são portadores de
rebeldia e de anseio de justiça. O seu espírito solidário e
universalista envolvem-na nos movimentos colectivos e
emprestam à sua poesia um forte élan expansivo e comunicante
que nos empolga, “entrando em nós luminosa e
potente”, como diz a poetisa. Registamos aqui algumas
das suas vivências e impressões que ajudarão a melhor
desenhar o seu universo poético.
Marília Gonçalves, 2006.
84 LATITUDES n° 27 - septembre 2006
Por essa altura os poemas de Castro
Alves andaram nos meus ouvidos,
trazidos pela voz de meu pai. Eu,
teria pouco mais de onze anos. Mas
a prisão política de meu pai e o
passado antifascista da família,
tinham-me preparado para ouvir
verdades. Da Cabana do Pai Tomás
lida pouco antes, a compreensão
de todo o horror levado além mares.
Escravatura e colonialismo, andaram
desde então, pesando em dor
na minha alma, como crime do qual
não me sentia excluída. Ao amar o
país a que pertencemos, as páginas
da sua história são assumidas com
glória ou com dor. Por tal habitueime
a dissociar a descoberta dos
mares da colonização e de suas
dolorosas consequências para os
povos que a sofreram. Castro Alves,
surgia a confirmar poemas que dizia
desde muito pequena. A poesia era
coração e força tendo a palavra ao
seu serviço. Castro Alves Ficou para
sempre em mim, a justificar decerto
muitos dos passos da minha vida de
mulher. Castro Alves a abrir caminho
para o meu coração em África. África
povos África seres humanos, África
espoliada. África que dava tudo. A
quem tudo negavam.
Hoje continuo a pensar que a arte
e a poesia têm um papel fundamental
na transformação da sociedade,
pela maneira como penetram e
tocam as sensibilidades de cada um.
Vejamos este excerto de O Povo ao
Poder (ver ao lado).
Latitudes — Como viveu o período
salazarista?
M. G. — Vivi-o como filha e familiar
de presos políticos, num meio
esclarecido politicamente, sabendo
donde vinham os golpes, com total
conhecimento dessa realidade o
que me permitiu ser uma jovem
equilibrada e sem malquerer outro
que não fosse aos causadores do
sofrimento que afligia Portugal e o
seu povo, e de que os meus iam
sendo vítimas, meu pai, o avô que
me criou, preso vinte e quatro
vezes, com tudo que daí resulta,
meu tio assassinado pela Pide, o
“Alex”. Minha tia tinha, seis meses
antes, perdido o filho pequeno e
matavam-lhe ainda o marido, o
companheiro.
emprego que dela resultou, com
todas as consequências que advieram.
Da segunda vez tinha vinte e nove
anos (já dobrei esse cabo) por motivos
de saúde de meu filho, tinha
visto os médicos aqui operarem
“milagres” no que respeitava ao
meu pai, e confiava plenamente no
sistema social francês e na medicina
aqui praticada.
Latitudes — Entre os poetas portugueses
e de outros países quais estão
mais associados à sua elaboração
poética?
M. G.— Quando menina fui criada
entre poetas. De quem nada herdei
em termos de escrita, mas de quem
aprendi sensibilidade se é coisa que
se aprenda e se desenvolva. Aprendi
essencialmente a olhar e a tentar
perceber.
Mas o encontro com um poeta,
quanto tinha cerca de doze anos, ia
revelar-me não uma forma de escrever,
mas a capacidade que a poesia
tem de entrar em nós, luminosa e
potente. Esse poeta foi Castro Alves,
o menino poeta libertador de escravos.
E a sua voz, sim, tem-me acompanhado
sempre, não a orientar
uma forma, mas a procurar que
forma e conteúdo não se afastassem
do olhar de poeta sensível ao
mundo que o rodeia.
Voltava do liceu, ao passar a passagem
de nível na Amadora, tinha
parado junto ao monte de livros em
segunda mão. Tinha então comprado
a vida de Chopin. Uma edição brasileira,
em banda desenhada, de
excelente qualidade gráfica. Por isso
deitei olhar interessada aos livros
expostos sob a coberta improvisada
que os protegia da chuva. Novo
livro reteve minha atenção. A vida
de Castro Alves. Chegada a casa
precipitei-me sobre a nova descoberta.
E fiquei presa à alma do poeta
libertário, ao fascínio da sua voz.
Distante da realidade portuguesa
de então. Tão distante que Portugal
se preparava para entrar dai a
pouco na guerra mais terrível que
minha sensibilidade infantil podia
prever. A guerra colonial. A guerra
anti-Castro Alves. O contrário do
coração do poeta. Porque contrária
à justiça e aos direitos humanos.
A praça! A praça é do povo
Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade
Cria águias em seu calor!
... ... ...
A palavra! Vós roubais-la
Aos lábios da multidão
Dizeis, senhores, à lava
Que não rompa do vulcão.
Mas qu’infâmia! Ai, velha Roma,
Ai cidade de Vendoma,
Ai mundos de cem heróis,
Dizei, cidades de pedra,
Onde a liberdade medra
Do porvir aos arrebóis.
Irmão da terra da América,
Filhos do solo da cruz,
Erguei as frontes altivas,
Bebei torrentes de luz...
Ai! Soberba populaça,
Dos nossos velhos Catões,
Lançai um protesto, ó povo,
Protesto que o mundo novo
Manda aos tronos e às nações.
Castro Alves
Alento
Névoa azul
Ou céu cinzento
Veludo por inventar
Na ascensão de poetas
às estrelas a boiar.
Nuvem de sonho miragem
paraíso por escrever...
A força é termos coragem
Da coragem nos doer.
Marília Gonçalves
Lisboa tem olhos verdes
Que incolor pássaro trouxe
Das arestas da poeira
Descoberta no instante.
Os olhos escureceram
Depois tornaram-se azuis
De vozes que nos ficaram
Entre poemas perdidos.
O som distante do cravo
Entreaberta janela
Onde se imprimem as pautas
De palavras que se perdem
Marília Gonçalves
n° 27 - septembre 2006 LATITUDES 85
Com todas as peripécias que habitaram
a minha jovem vida, e que
fazem parte da história da resistência
ao fascismo, histórias tão dolorosas,
tão complexas, não cabe
aqui, no espaço duma entrevista,
desenvolver o detalhado de tais
acontecimentos que, pela sua gravidade,
merecem o maior respeito ao
ser narrados.
Quando aos dezasseis anos comecei
a militar no bidonville de Saint-
Denis foi com espírito solidário que
comecei a dar lições de francês aos
desertores que chegavam. Porque
se insurgiam contra duas das formas
de opressão que mais me perseguiam
e aos meus, aos amigos, aos
direitos do ser humano: o fascismo
e o colonialismo. Continuava presente
Castro Alves. Mesmo na voz de outros
poetas o encontrava. Nesse período
do exílio de meu pai, dizia aqui por
Paris a Maldição de Jaime Cortesão.
Assim aos dezassete disse também
Catarina de Vicente Campinas e
quadras do António Aleixo, entre
outros. A poesia era a mais bela de
todas as armas contra o mais
hediondo regime. Que matava em
Portugal no solo de Portugal às
ocultas, hipocritamente, com a falsidade
peculiar do salazarismo .Que
matava além-Mar os negros filhos
africanos no solo próprio e para
onde eram levados os filhos de
Portugal, tão jovens, obrigados a
morrer ou a matar sem bem saberem
porquê.
Mas, voltando às repercussões do
fascismo sobre a minha vida, sabe,
quando o Notícias da Amadora1 foi
criado, eu estava a assistir de muito
perto à sua criação já que o seu
fundador foi precisamente um
desses poetas a que me referi anteriormente.
Andei mesmo pela
Amadora a distribuir prospectos
sobre o lançamento do jornal em
Outubro de 1958. Talvez influenciada
por esse acontecimento, tentei
com onze anos criar um jornal no
Externato onde estudava.
Nada tinha o coitado de subversivo
a não ser precisamente o facto de
ser jornal, mas a autorização foi-me
negada. A directora disse-me que a
Mocidade Portuguesa não aprovava
a criação do dito. Penso que a directora
nunca teria feito oposição; pois
chegou mesmo a levar um repórter
da rádio à escola onde eu disse e
gravei O menino de sua Mãe de
Fernando Pessoa.
Nem sempre foi fácil, foi mesmo
doloroso interromper a escolaridade,
mas a vida mandava e o
caminho era sobreviver e com
dignidade. Por vezes as lições da
vida são fonte de autoconfiança,
pois o certo é que a partir daí soube
que pelo trabalho se vencem obstáculos;
a menina tinha uma esplêndida
chave ao seu alcance. Descobri,
aos catorze anos, talvez prematuramente
mas de modo definitivo, o
valor do trabalho e a dimensão do
esforço.
Latitudes — Como encara a adaptação
dos seus poemas à música,
pois sabemos que possui alguns que
obtiveram sucesso?
M. G.— É verdade que, para além
da poesia que escrevo por imperiosa
necessidade interior, tenho
escrito também poemas-letras de
canções, que o compositor Arlindo
de Carvalho musicou.
São poemas escritos por medida
adaptando a forma a surgir à música
presente; comigo tem sido assim. É
uma outra forma de escrever visto
que parto de músicas já compostas,
para a construção do poema, pelo
que devo obedecer a ritmos,
métrica, tónicas e átonas essencialmente.
Quanto a êxitos possíveis de
canções devem-se ao factor misterioso
que faz que uma canção seja
melhor aceite que outra. Para além
disso há a universalidade da linguagem
que é a música já que todos
os povos, em qualquer ponto do
mundo, a podem compreender.
Latitudes — Sabemos que colaborou
nas rádio-livres e que tem dado
recitais. O que a move a esse contacto
poético com o público?
M. G. — Para além da indispensável
expressão poética, a musicalidade
da palavra dita e o grito de
revolta, penso que deve ter sido
raro dizer em púbico poemas outros
que esses que apelam para o
despertar da colectiva consciência.
Ou que apontam uma maneira de
ver e de reflectir realidades, que
É no traço rectilíneo
De inventar gestos de fumo
Que os olhos tornam-se verdes
A neutralizar o rumo.
Esboço ténue da ideia
Onde a palavra perverte
O fundo negro que ondeia
Na vertical da maré.
Há olhares que dissimulam
Harpejo esférica estrela
Mas dentro deles procuram
A circular forma branca.
Lisboa tem olhos verdes
Numa ode giratória
Afunda-se sol azul
A perfilar a memória.
Mas quando a sombra descai
Na cidade que é mulher
Há o grito lancinante
Duma criança a nascer.
Marília Gonçalves
Vem!...
Poeta meu irmão
do mundo inteiro
está a sombra a doer
Tu és o companheiro
de múltiplo segredo
por colher.
Poeta meu irmão
põe-te a caminho.
há uma encruzilhada...
É preciso vir devagarinho
Surpreender a estrada.
Poeta meu irmão
irmão de todos
De todos os poetas
por nascer
Há à nossa volta
hirsutos lobos
Querem comer.
Poeta meu irmão
e companheiro
de horas amargas...
Vamos rasgar no nevoeiro
Estradas mais largas.
Poeta meu irmão
O ser humano
pede passagem
Vamos num verso
a todo o pano
dar-lhe coragem.
Vem!
Poeta meu irmão
está a sombra a doer!
Caminha Companheiro
É chegada a hora de vencer.
Marília Gonçalves
"Quand le dernier arbre sera
abattu,
La dernière rivière empoisonnée,
Le dernier poisson pêché,
Alors vous découvrirez
Que l’argent ne se mange pas.”
"Quando a última árvore for
abatida,
A última ribeira envenenada,
O último peixe pescado,
Então vocês descobrirão
Que o dinheiro não serve para
comer."
Provérbio dos índios do Canadá
M. G. — A visão, chamemos-lhe
assim, que hoje tenho das perspectivas
sociais rumo ao futuro, não se
afastam de modo algum da minha
infantil esperança num amanhã
justo e fraterno.
Nós, seres humanos, atravessámos as
mais conturbadas épocas, erguemonos
da nossa condição primitiva,
descemos das árvores e através de
milénios aprendemos fazendo
colheita de cada experiência, de
cada aventura, de cada sofrimento.
Hoje o ser humano alcançou um
estado avançado de conhecimento,
como não confiar que essa aprendizagem
não possa deixar de levarnos
ainda a maior conhecimento e
compreensão. É verdade que estamos
presentemente confrontados
com a realidade ecológica que vai
a curto prazo obrigar-nos a uma
escolha de sociedade. Seria um
enorme desperdício e um absurdo
que a espécie humana em amplo
conhecimento se autodestruísse,
sem que um impulso rumo ao
futuro a leve pelo racional caminho
que a tanto esforço preparou.
Por outro lado os horizontes políticos
e religiosos atravessam as suas
próprias crises lançando muitos de
nós na incredulidade e no cepticismo.
Mas a verdade essa em que
sempre acreditei é que desde sempre
os escravos se libertam, mesmo se,
quais espartacos ou cristos, nos vão
crucificando no caminho.
Por isso o meu credo infinito no ser
humano e na sua capacidade de
reflectir. Ante a escolha mais simples:
a vida ou a morte, com o respeito
que a vida em sua origem nos
merece.
E nesse respeito pela vida própria
tudo se definirá política e socialmente.
A Natureza e suas leis aliaram-
se inevitavelmente aos que
nunca tiveram poder de decisão
sobre as agressões que sofreu
E, porque a nossa inteligência vai
saber afastar-nos de tão trágica
conclusão, a esperança continua acesa
e é sempre o caminho a escolher _
1 Este semanário local era dos mais
arrojados nos comentários e artigos
que publicava, nessas décadas antes
de Abril 74, tendo conquistado uma
audiência nacional e muitos leitores
em França.
podem, por vezes, parecer menos
evidentes a alguns de nós.
Algumas vezes esses poemas são
uma homenagem a todos os que,
vencendo a sombra e a dor, fizeram
de suas vidas um efectivo e
elevado combate.
Latitudes — Agora, são os fóruns
através da Internet. Que descobertas
mais surpreendentes tem feito.
M. G.— A mais bela de todas: a de
que afinal somos milhares a partilhar
a mesma visão, os mesmos
anseios e, graças à Internet e à
proximidade que nos traz de outros
povos, esta imensa partilha, a
mesma humana luta, rumo ao
porvir. O que até aqui nem sempre
era possível por razões diversas,
algumas das quais materiais
Hoje, num segundo, podemos dialogar
com irmãos em qualquer ponto
do mundo. No fundo, a Internet é
como o vasto mundo, cada um
escolhe o caminho que lhe interessa.
Os humanistas e os poetas vão a
caminho do ser Humano.
Latitudes — Para quando a continuidade
ao livro “À Procura do
Traço” que publicou faz mais de
dez anos? Sei que não lhe falta
poesia escrita.
M. G. — Depois disso saíram antologias
às quais estou ligada, Elos de
Poesia, do grupo do mesmo nome,
de que há um ano saiu o primeiro
número estando o segundo no
prelo.
E em El Verbo Descerrajado, de
edição chilena, no seguimento do
combate de poetas em solidariedade
para com companheiros
poetas chilenos prisioneiros ainda
do tempo de Pinochet e que estavam
em greve da fome.
Quanto a livro de minha poesia,
apenas falta editora, que os
poemas, esses, brotam de espontâneo
manancial.
Latitudes — A Marília nasceu num
meio familiar muito sensível aos
movimentos sociais e cedo interveio
neles. Que perspectiva nos traça
nesse aspecto da nossa actualidade
e daquela que mais de perto a sensibiliza?
sem que um impulso rumo ao
futuro a leve pelo racional caminho
que a tanto esforço preparou.
Por outro lado os horizontes políticos
e religiosos atravessam as suas
próprias crises lançando muitos de
nós na incredulidade e no cepticismo.
Mas a verdade essa em que
sempre acreditei é que desde sempre
os escravos se libertam, mesmo se,
quais espartacos ou cristos, nos vão
crucificando no caminho.
Por isso o meu credo infinito no ser
humano e na sua capacidade de
reflectir. Ante a escolha mais simples:
a vida ou a morte, com o respeito
que a vida em sua origem nos
merece.
E nesse respeito pela vida própria
tudo se definirá política e socialmente.
A Natureza e suas leis aliaram-
se inevitavelmente aos que
nunca tiveram poder de decisão
sobre as agressões que sofreu
E, porque a nossa inteligência vai
saber afastar-nos de tão trágica
conclusão, a esperança continua acesa
e é sempre o caminho a escolher _
"1" Este semanário local era dos mais
arrojados nos comentários e artigos
que publicava, nessas décadas antes
de Abril 74, tendo conquistado uma
audiência nacional e muitos leitores
em França.
Sem comentários:
Enviar um comentário