Associação dos Capitães de Abril
http://25abril।org/
Ode à Paz
Natália Correia
Cesse o ímpio desterro, ó Mães, e redivivo
Restaure o rito as torres das primitivas crenças!
Vossa espectral ausência foi-nos tempo perdido
Em factícias ciências.
Fomos nós que fugimos ou vós as foragidas
De um descarnado credo? e em vagos horizontes
Do nosso sangue errais, a prantear-nos longínquas...
Ó Mães descei dos montes!
Estorcem-se em batalhas os campos dolorosos
E, numa correria por sonhos maus, em trânsito,
De guerra em guerra, somos um vaguear autómatos
Numa névoa de sangue.
Perdulários perdemos os nossos nomes próprios
E nas cinzas do verbo os números ensinam
A lógica mais triste de sermos uns para os outros
Motivos de chacina.
Antes que as flores expirem numa lenta agonia,
Passe um bando de mísseis e nos leve as garras,
De iluminar o nada a luz fique vazia
E apodreçam as águas.
Antes que o tempo venha morrer nos nossos olhos,
Voltai do monte, ó nácar das madrugadas rústicas!
Ó Mães! Se os próprios deuses são vossos filhos pródigos,
Perdoais nossas culpas!
Das moradas do ser éreis o muro e a telha,
Lençol tecido por mistérios femininos;
Numa inocência agrária, a lenha, o linho a ideia
Segura dos caminhos.
Éreis, de madrepérola, os pilares dos céus claros,
A pureza do pão e a limpeza dos ventos.
Foi isto há tanto tempo. Para que estrela mudastes
As colunas do templo?
Onde cantam as aves que emudeceis nos ecos?
Nascem e morrem os deuses. Só vós que os procriais
E lhes fiais os fados sois por cima dos séculos
Puramente imortais.
Vinde, sábias de novo, inspirar os oráculos,
Expulsar dos vaticínios os rostos funerários.
Apressai-vos, ó Mães! Que as pestes já estão prontas
Nos nossos calendários.
No tráfego da ira, semáforos nucleares
Já impedem o trânsito para as últimas esperanças.
Vinde, meigas e mágicas ó fadas minerais
De perdidas lembranças!
Com a frescura da origem voltai novamente
Brilhe o ovo de prata de que somos nascidos,
A paz entre nos sonhos; e à casta nascente
Retrocedam os rios.
Cesse o nosso castigo, Mães despregai da cruz
A estampa triste deste agonizar infindo.
O deus prostrado e tétrico que ensanguentou a luz
Também é vosso filho.
Que pomba nos trará notícia do armistício,
Que rosa deixará um perfumado rasto
Quando um deus condenado à lição do suplício
Diviniza o holocausto?
Libertai-o e entre os deuses dai-lhe o lugar sadio
De filho humilde às vossas sentenças naturais.
Adorar só um deus é um orgulho sacrílego
Que não nos perdoais.
Vinde fartes e férteis , claras vogais do verbo
Formosíssimas ânforas de bondade uterina!
Esconjurai, ó frutíferas!, os senhores dos ponteiros
Que marcam a chacina.
Cantata de Paz
Sophia de Mello Breyner Andresen
Vemoos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror
A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças
D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados
Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
1 comentário:
As mãos
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre, O Canto e as Armas, 1967
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/poemasemana/05/01.html
Enviar um comentário