https://www.youtube.com/watch?v=IxE5Yg_6Dwk
Meu sonho antiga balada
perdida composição
ficou-me no pó da estrada
esquecida em meu coração.
Nem a luz da alvorada
veio depô-la em minha mão.
Tinha timbre de oceano
na cor azul do trigal
em vagas de desengano
espraiando no areal
minha vida ano após ano
areia, pó, afinal.
Em som grave a procurei
uma cítara a tangia
porque caminhos andei
que nem ao longe a ouvia
Na voz que tinha chorei
mas nada ma devolvia.
Oh minha balada antiga
meu terno sonho de infante.
Não há palavra que diga
a voz pura que te cante.
Oh velha balada antiga
lembrando o dia distante.
Nunca tornarás a ser!
Como eu de mim me perdi...
mais ninguém sabe tanger
o que só eu aprendi.
Tanto a vida faz doer
que nem tão pouco a vivi.
M.G.
RONDEL DE AGOSTO
Às nuvens subia aroma de mosto
os bagos pisados no lagar escorriam
devolvendo ao céu quente sol de Agosto
no vapor do álcool vinhedos gemiam.
De aves forasteiras os cantos se ouviam
as mulheres cantavam e da cor do rosto
devolvendo ao céu quente sol de Agosto
no vapor do álcool vinhedos gemiam.
No regresso a casa após o sol posto
os corpos cansados, as pernas tremiam
levavam nos lábios memória do gosto
das uvas esmagadas que o lagar enchiam.
Às nuvens subia aroma de mosto.
M.G.
Oh noites azuis do oriente
oh noites entre todas as mais belas
oh noites onde o céu é transparente.
No brilho distante das estrelas
o véu de luz ilumina o deserto
oh noites de mito e aguarelas.
Meu olhar de vos anda tão perto
que se inunda de luz e de magia
oh noites a espelhar o céu aberto.
Ao longe me trespassa a nostalgia
por ter deixado em vos o meu olhar.
Na noite ocidental fico a espreitar
o brilho que de noite lembra o dia.
M.G.
Aos Casais das Comeiras-Aveiras de Cima
aos seus magníficos filhos e filhas
uma das minhas humanas escolas da vida
da solidariedade e da amizade sã e fraterna
Lininha
Guardo num cofre d’oiro pequenino
caminhos de sol a gargalhar
quando havia o timbre cristalino
na dança de vinhedos ao luar.
Níveo corcel espalhava ao vento a crina
ainda hoje presa ao meu olhar
azul o céu esvaia-se no ar
sobre o poeta com alma de menina.
Alvejava o moinho, asas de brim
perdido na tormenta da distância
minha longínqua torre de marfim.
Na acre caminhada para o fim
tempo loiro, distante, da infância
eterniza a imagem que há em mim.
M.G.
Anda à solta a ventania
veio dos confins do mundo...
passa por nós assobia
na voz que nos angustia
o coração num segundo.
Quem abriu a porta ao vento
pra gritar em iras tais?
Atravessou o momento
dos sonhos imateriais.
Quando é apenas aragem
sabe-nos bem e perfuma
o indicio de viagem
com ilusão de caruma.
Mas se for brisa afinal
tem cheiro acre marinho
paisagem de vendaval
em constante torvelinho.
M.G.
OH meu amor que fugiste
para não mais regressar
sem pensar na dor que existe
na ternura a soluçar.
Oiço uma fonte a gemer...
ou será a minha voz?
Não mais sei reconhecer
o sonho que havia em nós.
O ribeiro refulgente
saltita como saltei
quando menina contente
não sabia o que hoje sei.
Se agora a vida me dói
lembro ainda com saudade
versos, canções que cantei
menina de pouca idade.
M.G.
À Claudia, a brincar
Deste-me o cheiro da rosa
ofereci-te um caramelo
vermelha era a flor vistosa
o bombom era amarelo.
Deste-me o cheiro da flor
depois o cheiro fugiu
provaste o doce sabor
que se desfez fio a fio.
Levaste contigo a rosa
flor roubada num jardim...
mas sendo também gulosa
rebuçado viu seu fim.
Em suma... tu emprestaste
o perfume dum segundo
enquanto saboreaste
o doce até ao seu fundo.
M.G.
RONDEL DO MEDO
À noite o luar sobre arvoredo
desenha fantasmas formas irreais
mas a campesina tremia de medo
sentindo prendê-la traços vegetais.
Nos ninhos dormiam leves os pardais.
Trouxe-os o poente, de longe tão cedo...
nem a sua voz se escutava mais.
Um monstro nascia de enorme penedo.
Tudo era mistério na noite em segredo
estreitos os caminhos sobrenaturais
trazendo à memória a voz do bruxedo
que ouvira em pequena no lar de seus pais
nos serões antigos o único enredo.
M.G.
RONDEL DA MORTE
Fugiste vulto amigo
na noite solitária
invadiu meu abrigo,
da morte, a emissária.
Minha força contrária
quer resistir ao perigo.
No triste lar antigo
resisto temerária.
Pelo velho postigo
a luz incendiária
rejeita o inimigo...
voz de funérea ária
aponta-me o jazigo.
M.G.
OH olivais
vindos de trás...
sois vos que herdais
de nossos pais
símbolo de Paz!
Oh olivais
do esforço antigo
de nossos pais
sois vos que herdais
seu braço amigo
Oh olivais...
olivais de Paz sois o sustento
do magro caldo camponês
vos que sois alma, força e alento...
a vossa voz segue a do vento
a olhar o mundo de lés-a lés.
Olivais da Paz sois o tempero
da triste mesa do camponês
trémula luz no desespero
do seu cansaço, do frio severo
que os vai forçando mês após mês.
Oh olivais campo de esperança
vindo de outrora como tributo.
Dom ao futuro, na confiança
por cada vida cada criança!
Esforçada mão sem ver o fruto!
Oh olivais enluarados
folhas de prata a refulgir
pequenos frutos espezinhados...
liquido sol enche sobrados
quando a fadiga manda dormir.
M.G.
Nada tornará a ser!
Fugiu o riso de outrora
quando vi amanhecer
a minha aurora.
O tempo não volta atrás...
nossos mais belos momentos
na alegria que é paz
efusão e sentimentos...
tudo se esfuma no tempo
cor ardente esmaecida...
à volta de nós o vento
gira...leva-nos a vida.
Será apenas o vento
comparsa amargo do tempo
ou o nosso sentimento
ainda na inocência...
ao ser traído não quer
escutar o som que ainda trás
raízes de esquecimento?
Nada tornará a ser!
A morte que é ainda vida
leva-nos tudo o que houver
da nossa infância perdida.
Os luminosos sorrisos
olhos humanos bondosos
que nos eram tão precisos
a guiarem-nos ditosos
entre mil cores paraísos...
nesse perfume de espanto
horas e dias de encanto
de gargalhadas, de risos.
Hoje o silêncio é o pranto
os mortos, não mais estão vivos!
M.G.
Na noite amarga
nossa voz larga
antigo canto.
Distante, longe
a agua foge
fonte de pranto.
Voz de guitarra
ou de cigarra
noite de Verão
a voz desgarra
luz ao serão.
Vêm poetas
fulgem cometas
caem estrelas
vozes secretas
são indirectas
cor de aguarelas.
Passam os dias
em nostalgia
cores outonais
paisagem fria
da penedia
calam pardais.
Há sons marinhos
pelos caminhos
do voo breve...
onde os espinhos
rasgam os ninhos...
ai, fria neve.
M.G.
Saber se a sede do verso
esta fome do poema
o sonho vago disperso
que nos dói, nos envenena
são vozes do universo
captadas pelo fonema.
Saber donde vem a fala
em que o poema interpreta
o mistério que se exala
da sua origem secreta.
Dão-lhe nome: inspiração.
Dom ou dádiva mas donde
que fonte nos traz à mão
o segredo em que se esconde?
Pétalas d’água alinhadas
na incerteza de ser.
Formas que foram criadas
pra tentar compreender.
M.G.
OUTRA
Ser jovem, viver no campo
mas no campo verdadeiro.
Ter um poço um muro branco
um pomar de forte cheiro.
Ter uma pequena horta
um burro de olhos de brilho
ter em casa aberta a porta
fazer pão, ver rir um filho
ter rosas e sardinheiras
vermelhas como o sorriso.
Na sombra das oliveiras
paz de térreo paraíso;
ver à distância o pinhal
ter pinhas, juntar caruma
ver no vento o caniçal
a baloiçar cada pluma.
Escutar ao amanhecer
e no decorrer do dia
asas a enaltecer
as vozes da alegria.
Ter uma ovelhinha loura
mais uma cabra castanha
ser alegre como outrora
ágil, romântica, estranha...
ir às cores do sol poente
ou ao azul da manhã
buscar o verso veemente
cantar a vida aldeã.
Tornar a sentir-me gente.
Fraterna, amiga, pagã.
Ver na alvura da mesa
pão para ser repartido
oferta da natureza
em minha mão construído.
Ser a mesma gargalhada
expontânea, boa, sincera,
à frente ver ainda estrada
ser ainda primavera.
Dar o bom-dia a quem passa
no costume camponês
olhar o sol na vidraça
dia-a-dia mês a mês.
No dia tempestuoso
saber, na chuva inclemente
o segredo luminoso
do germinar da semente.
Ser feliz de amar a vida
ter o amor companheiro
que dá alegria à lida
à noite, o calor, o cheiro.
À lareira no serão
ouvir os contos antigos...
ao pé a família, o cão,
a voz doce dos amigos.
Ser vertigem sensual
mas com alma de menina.
Enfim, se eu tal e qual
na força de cada rima!
M.G.
Voam besouros louros
ao sol de estio.
Das sardinheiras
malvas vermelhas...
perfume forte
envolve o ar.
Na estrada cantam
as raparigas
vão a passar.
Rubros canteiros
cachos vermelhos
que o tempo fez.
Voam abelhas
de asas de luz.
No bebedouro
do poço velho
a água aquece
o céu azul.
Voam os tordos
pinhais oferecem
em grito verde fruto,
semente...
o cheiro forte
resina à sorte
do fogo sempre.
Ágeis pardais
voam prá sombra
ali vizinha.
Há olivais,
miniaturais
sois da noitinha.
A vinha encobre
figueiras tortas
ressequidas
mas de seus braços
pendem pedaços
do mel das vidas.
Milho na eira,
o malho dorme
com o calor.
Cantam os dias
as cotovias,
será de amor?
A terra agreste
gretada veste
seu burel duro.
Só à tardinha
ao fim do dia
sob o ar puro
virá a água
correr os regos
de leira em leira.
Novo perfume
acende o lume
do anoitecer.
O sol no cume
vai-se escondendo
está a descer.
O céu escurece
a lua tece
seu branco véu.
Riem estrelas
loiras e belas
enchendo o céu.
Ao longe o mocho
é o relógio de adormecer.
Cantam encantam
os rouxinóis
no ar levantam
claves que espantam
abrindo sois.
Há melodia
de noite, dia,
o lavrador
no seu cansaço
mal vê o espaço
medido em dor.
O dia o deita
dia o levanta!
Na noite à espreita
da alvorada
o galo canta.
M.G.
AO MUNDO em Memória de Meu Pai
A Força da Poesia
Poesia guerrilheira
voz firme contemplativa
alastrando a terra inteira
na sua força expressiva.
Poesia que diz não
para construir o sim
quando repartido o pão
puder haver Paz enfim.
M.G.
ALERTA
Grita filha
há uma aranha
na brancura da parede
que peçonhenta, tamanha
vai tecendo a sua rede.
Grita filha!
Essa fobia
é protecção natural
contra a aranha sombria
que tem o símbolo do mal.
Grita com todas as forças!
Grita porque há mesmo perigo
essa aranha, uma cruz negra
é o pior inimigo.
Por meu amor não te cales!
Grita filha é tua mãe
que te impele pra que fales...
contigo grita também!
Essa aranha que se estende
tem o passo marcial
com fúria que surpreende
o incauto em voz fatal.
Grita filha
o bicho imundo
sai vertiginosamente
da sombra vinda do fundo
em veneno de serpente;
tal a jibóia medonha
enrola-se, abraça o mundo
para ir crescendo em peçonha.
Introduz-se em toda a parte
tudo corrói e desfaz
é inimiga da Arte,
do Ser Humano, da Paz.
Grita filha mas tão alto
num grito tão verdadeiro
que desperte em sobressalto
o que não quer ver primeiro.
Essa aranha pestilenta
odeia a própria cultura
em fogueira que alimenta
livro após livro censura.
Opõe à humanidade
a sua força brutal;
por onde ela passa invade
mata o constitucional!
É um monstro repelente:
primeiro ataca o mais fraco
para ir seguidamente
oculta em cada buraco
destruir a liberdade!
Inimiga da diferença!
Grita minha filha grita
faz ouvir tua presença.
Aponta o bicho feroz
mostra-o, sacode os amigos
com a força da tua voz!
Grita esse enredo de perigos!
Grita filha! Desta vez
é um grito racional
porque essa aranha é o não
ao direito universal.
Sem medo abre tua boca!
Grita alto! Grita forte!
Porque toda a força é pouca
para lutar contra a morte.
Grita, grita minha filha
não te cales nunca mais
não se veja outra bastilha
prender os próprios jornais!
Que teu grito seja infindo
circule dê volta ao mundo!
Jovem voz entusiástica
unindo o povo profundo
contra a bandeira suástica.
M.G.
A Praça, a Praça é do povo
como o céu é do condor.
CASTRO ALVES
Vem desce à rua
poeta meu irmão!
No mundo a plebe
continua
nua, vem
traz lhe o teu poema
coração.
Lembra Castro Alves
verdadeiro!
Voz dorida, sincera.
Ele foi o primeiro!
Nós continuação
do que ele era!
São precisos versos d’emoção!
Versos pra despertar
a letargia de cada coração
vem prá rua cantar!
Recorda o menino que dizia
que a praça era do povo!
Tal como nesse dia
acordemos à voz da poesia
a esperança, o mundo novo!
A nossa voz, irmãos de poesia
será circulação universal!
Românticos poetas, cada dia
terá de ser semente triunfal!
Há senhores, escravatura
hoje diferente, agrilhoando a voz
o pensamento!
Castro Alves virá à nossa frente
mostrar-nos a luta do presente!
Vem desce à rua
de braço dado não temos medo
o sol ilumina-nos o dia
nos confins do degredo!
Escuta a voz
do poeta que em mim fala
espelho da tua voz!
Não é poeta aquele que se cala
poetas somos nós
que iremos avançando...
abrindo a noite
incendiá-la em luz!
Vencendo a lama atroz
que o mundo exala.
Para abrir céus azuis.
Vem! Vamos despertar a humanidade
em cada ser humano!
Atravessemos os campos a cidade
dia a dia, ano a ano!
Então nosso cantar terá sentido
Castro Alves condor
trás em versos o povo reerguido
saiamos do torpor.
Poetas:
nossos versos, o poema
tem seiva de vida secular
vamos quebrar aos povos a algema
que agrilhoa o pensar.
É chegado o tempo de outra luta
elevemos a esperança
à certeza final que nos escuta
como atenta criança.
Unidos braço a braço, forte voz
faremos ecoar no infinito:
findou o reino do algoz
só ele é o proscrito!
Vamos abrir os cofres onde pão
sem serventia não tem outro valor.
Que repartido dê a cada irmão
a dignidade, semente do amor!
Voltemos a dar à poesia
a força da voz dos oprimidos!
Poetas saiamos para o dia
não queremos sofrimento nem gemidos!
Esse mundo fraterno que Jesus
ao mundo prometeu
será de Paz compreensão e luz
entre crente e ateu.
A poesia tem o dedo apontado
contra o usurpador.
Não queremos nunca mais o pão fechado
não queremos ver mais dor.
Poetas!
Castro Alves está presente!
Vamos seguir-lhe o passo!
Nunca mais nos morra friamente
um irmão de fome, de cansaço.
É urgente mostrar à juventude
a beleza do mundo!
Acabando de vez com a turpitude
nós trazemos do fundo
humanos fraternos sentimentos
para cada criança
o mundo pacifico criemos
fraterna luz de esperança!
Então voltará a alegria
e o terceiro milénio
será enfim
o mundo da harmonia
em nova transfusão de oxigénio!
Respiremos de paz!
Consciência justa
nada tem a temer
venha do mundo inteiro
a voz que faz
a nossa voz romper!
Do grito solidário futurista
o mundo vai nascer.
M.G.
Por um antifascista morto
quatro se levantarão!
Navio que ao chegar ao porto
deixa entrar luz no porão.
Assim surgirão mil vozes
no verbo multiplicar
denuncia contra os algozes
contra a sede de matar.
Na voz do antifascista
há gritos de Liberdade
pra que cada um resista
e seja fraternidade.
Que no amor mais profundo
os povos sejam irmãos
para que haja Paz no mundo
com todos de mãos nas mãos.
Que nos importa que o sol
que nos dá tanta alegria
seja diferente arrebol
em cada pele que nascia.
Cada terra, continente
tem sua própria cultura.
Cada um de nós diferente
mas no espirito abertura!
Sermos quem somos, tal qual...
mas ver no que os outros são
um direito universal
em usos, religião.
Mas sempre o mesmo respeito
deve unir um povo a outro,
desdenhando o preconceito
inventar o mundo novo!
Não ter medo de falar
de trocar opiniões
cada um de nós a escutar
as mais diversas razoes.
Mas a querer compreender
sem nunca impor partilhar,
pra podermos ver nascer
dia de amor a brilhar.
Por isso não há quem vença
o que morrer convencido
por cada morto apareça
um povo de olhar erguido!
Não passará o fascismo
onde couber a razão
abramos ao altruísmo
as portas do coração.
A batalha será ganha;
a Paz será a vitoria!
Esse verme, ou essa aranha
não mais entrarão na historia.
M.G.
Meu menino na distância
uma pomba de ternura
virá sobre tua infância
numa voz suave, pura.
Meu doce terno menino
numa canção de embalar
venho dizer-te baixinho
que o sol vai nascer, brilhar.
Água fresca, transparente
virá trazer-te a beber
paz que o coração te pede
oh meu menino a crescer.
M.G.
Meu amor de olhos marinhos
onde eu queria naufragar
mas desconheço caminhos
que me levem ao teu mar.
Branco luar se desata
do teu olhar negro, escuro
como cascata de prata
a iluminar o futuro.
Navego nas tuas mãos
ardentia de desejo
entre cânticos pagãos
e a musica dum beijo.
Mas o teu olhar ternura
inunda-me novamente.
És na noite azul, escura
o contaste refulgente.
Meu amor, luz do meu dia
que outro igual amanhece
na tua pele luzidia
é que meu corpo acontece.
M.G.
O velho trémulo
de frio caiu
entre o rebanho
está tão mudado
há tanto tempo
subindo o prado.
No lar família
aconchegada.
A voz da Emilia
também cansada
espera o pastor.
Longa jornada
desde o nascente
ao sol a por.
A noite avança.
Uma criança
chora no berço.
Ao canto, só
a velha avo
reza seu terço.
Um vago medo...
pressentimento?
Quem o dirá;
a noite cedo
fecha o segredo
escurece já.
O pastor não vem
ouve-se alguém
pedir ajuda.
A avo triste
no escuro assiste
que povo acuda.
Hei-los em bando
trevas trepando
na serrania
na voz do berço
sobe a do terço
em agonia.
O pastor caído
sem um gemido
regela agora
só o latido
do cão amigo
vai noite fora.
Como sinal
se ouve afinal
o cão ao longe.
No matagal
o povo acorre
como quem foge.
Erguem do solo
levam ao colo
para seu lar.
Ouve-se Eolo
por toda a serra
em frio uivar.
Chegado a casa
à lareira em brasa
é posto ao pé.
Chora a família
geme a Emilia
que morto o vê.
Insana lida
apenas vida
magro sustento!
Na despedida
na voz do cão
uiva a do vento.
Fim do cansaço
gélido abraço
o pastor estreitou.
Descai-lhe o braço
parou o passo
já descansou...
A pobre herança
de quem se cansa
a trabalhar
é a criança
na mesma dança
que irá girar.
Tanto trabalho
desaconchego
tanto labor...
eterna bulha
pra encher a tulha
ao lavrador.
M.G.
Formulam-se interesses
e leis que os defendem
noções correspondem
à tónica incerta.
Balanço quebrado
flutua também
no lago gelado
da base de alguém.
Compõem os ritmos
exemplos, memórias
por fora das silabas
de nossas historias.
Mas se musicais
nos falam os dias
não voltarão mais
as vãs cotovias.
M.G.
Meu amor, sonhei contigo
mas parei entristecida
vejo em teus olhos o perigo
que condena minha vida.
Tal perigo suave fora
se abrandasses teu andar...
passaste foste-te embora
aqui fiquei a sonhar.
Levaste na caminhada
todo o tempo que era meu...
nas aos não me ficou nada
tudo de mim se perdeu.
Ficaram sete palavras
desenho a fogo d’inferno...
no meu sofrer vens e lavras
poemas no meu caderno.
Meu amor
sonhei contigo...
minha dor
d’entontecer
sei que perdi
meu amigo
ou não o cheguei a ter.
Meu amor
na solidão
surgiram rubros punhais
abrindo meu coração
às panteras aos chacais.
Fugiu-me o sonho de amor.
Parei à margem da vida.
Desfolhada como flor
pelo vendaval perseguida.
M.G.
A noite bate à porta.
Amargo exílio
quando o dia findou
a luz não mais transporta
o tempo que voou.
A sombra lenta vence
o dia que escurece.
Na mão do poeta adormecido
está à espera um verso
ou um gemido.
Seu olhar
de contemplações repleto
parece serenar em sono quieto.
Mas no sono aparente
dessa visão tranquila
agitam-se fantasmas
em saltos de arlequim.
Há vestígios marinhos
alinhando-se em fila
caminho entre escarpas
sem chegar ao fim.
Mas o poeta dorme.
Enquanto dorme escreve
poemas corpóreos
de vozes minerais.
vê deslizar por ele
entre restos de trapo
as famélicas fauces
entre ervas animais.
Há um dedo estendido
como livro futuro
que nunca conseguiu.
Pálido poeta
a tropeçar no escuro
a desenhar nos ares
sons que não ouviu.
Sabe ser responsável
como se rio de tinta
navegasse veloz
entre quentes palavras.
O poeta no sonho sente
faltar-lhe a voz
entreabre os olhos
à procura da fala.
A um canto do quarto
há um baú d’estanho
que viera do tempo
através dos avos
baú entreaberto
para universo estranho
começo do silêncio
a espelhar-se na voz.
Há um gesto d’infância
no olhar que procura
o fazedor de versos
vai atras da verdade
a tropeçar nas rochas
a tropeçar na sombra
que formam o inicio
de toda a eternidade.
M.G.
Falar de ti
dizer quem és
que percebi
tuas marés
aonde vais
donde vieste
prantos e ais
quantos tiveste.
Quem adivinha
se há no trovão
a carga eléctrica
capaz de ser
ternura ou pão.
M.G.
Água pura, breve passa
pra não voltar nunca mais.
Meu grito se despedaça
navio onde está teu cais.
M.G.
Inventei outro ser. Olhos humanos
inexistentes, apenas pressentidos
andei-os soletrando em desengano
no subúrbio dos sonhos aluídos.
Talvez o fantasma transparente
deixasse atravessar em palidez
a luz vinda de longe opalescente
que no ar morno em sombra se desfez.
Ano após ano, fui construindo o dia
verídico, intenso, universal
mas o olhar que nos meus olhos via
ia perdendo o brilho natural.
Na escuridão mais nada deslumbrava
essa visão, imagem destruída...
mas quanto mais a luz me iluminava
menos via brilhar a minha vida.
M.G.
Mágica noite de encanto
donde vem a tua voz
feita de sonho, de pranto
a sombra que é o teu manto
soluça dento de nós.
Estrelas perfumam com oiro
a nocturna solidão
o dia esconde-se loiro.
Escondeu o sol, nasce a lua
arco de castelo moiro
emoldura a noite nua.
Dançam névoas pelo céu.
O azul oriental
é o teu olhar no meu
tão escuro que me faz mal.
O mar desenha uma vela
de nau há muito distante...
de nau ou de caravela
que segue rumo a Levante.
Ondas que vêm de manso
acariciar a pele
do sonho que sem descanso
vai mis longe do que alcanço
na brancura do papel.
Meu sonho! Todo em lonjura!
Purpúrea acende-se a tarde...
se é febre, raiva ou loucura
têm a voz da ternura
que em meus olhos em ti arde.
M.G.
Numa caixa colorida
de suave tom perfumada
descobri a minha vida
em fita de seda atada.
Desfiz o no que ela tinha
dei-lhe asas, fi-la voar
vi-a partir andorinha
negro voo sobre o mar.
Desde então a minha vida
a mim nunca mais voltou.
Na areia, entristecida
espero-a ainda não poisou.
M.G.
Fazedora de versos esquecidos
quem se lembra de mim?
Tantos versos que sentidos
foram início e o fim.
Na noite assustadora
nenhum verso me aquece
ou ilumina
o tempo dia a dia vai embora
perdeu-se da menina.
Transparente, invisível
quem me vê
Ou sabe aonde vou?
Eterno porquê
que a vida fecundou.
M.G.
Desperto sou água mansa
desaguo no olhar
do que há em mim
da criança
que vê afundar a esperança
de novo dia raiar.
Dissipou-se entre tentáculos
em translúcida ameaça
falam distantes oráculos
prenuncio duma desgraça.
Mas vem a água fluindo
de Delfos até aqui
traz-me de Apolo esculpido
cada verso que escrevi.
Paro. Colheita de sons
de imagens de poesia.
Na hora dos semitons
há nostalgia.
M.G.
Falei do mar dos teus olhos
da aprendizagem do sol
vi arremessar a escolhos
o voo dum rouxinol.
Disse palavras de Verão
na surpresa do Inverno
esvaídos em tua mão
os versos do meu caderno.
A longa estrada que um dia
te viu subir para mim
era uma álea perdida
árvores de outro jardim.
Mas na distância do tempo
que nos afasta de nós
perdeu o sol o alento
que nos acendia a voz.
M.G.
Nas mãos de meu amigo
deito o rosto
de muitas madrugadas
e do medo.
Descanso os uivos internos
de luas por diluir.
Ao encontrar-me comigo
entre mãos do meu amigo
sou mais eu!
Alegre ou triste
sinto que tudo o que existe
girando em volta de nós
espelha o mundo que persiste
na minha, na sua voz.
É nas mãos de meu amigo
que descubro a dimensão
do verso escrito em que digo
haver nos olhos do pão
esta fome que não finda
fraterna, de liberdade
numa fecunda seara
pra toda a humanidade.
M.G.
Quando havia sorrisos transparentes
como o fluir de águas de cristal
quando meus olhos eram inocentes
ingénuos do que é bem ou do que é mal
minha voz tinha o timbre de luz
saltitar de ideias movimento
agora oiço na minha voz a voz do vento
angustia de caminhos percorridos
a dor, a mesma dor
a procurar sempre uma resposta
porquê inocente doutra infância
na imposta solidão.
Tempo nascente ao sorriso do sol.
Hoje são doridos os meus passos
olhos que se negam não são meus
se a delirar por ti abro eus braços
neles sei que não terei os teus.
M.G.
Duas tranças minha avo
teve no tempo menino
seus irmãos eram crianças
as suas vozes um hino.
Os búzios vinham de longe
olhos de pai marinheiro
historias no tempo que foge
entre as águas e um veleiro.
Quase um século, um milénio
quem sabe o tempo medir?
Mais vidas oxigénio
em cada dia a fugir.
Rumo ao sul. Ou polo norte
a tarde avança fremente
levada por vento forte
transforma os outros na gente.
Mas a vida borboleta
nas tranças de minha avo
vai seguindo a linha recta
do dia de ficar só.
M.G.
pergunto ao vento que passa
noticias do meu pais.
Lisboa anda em Paris MANUEL ALEGRE
Tejo, Sena
nem sei bem como são
a cidade repleta
do cantar do poeta
que vai por outra mão.
São férias? Talvez não.
Este perfume estranho
é mais uma canção
ou é mais um desenho.
Colorido, cinzento?
O que sei afinal
é que nem sempre o vento
é fúria ou vendaval!
M.G.
Eu na areia loura
olhava-te em altura.
Tu olhavas o céu
tão enorme lonjura
do teu olhar ao meu.
Eu na areia fina
o teu olhar buscava
eu, era uma menina
tu, um deus que passava.
Nos teus olhos pardos
à cor do mar já feitos
faiscavam os dardos
que os meus tinham desfeitos.
M.G.
Um cisne verde
desliza sobre a erva.
Tudo é branco e azul
numa planície estranha
em dedos de água gelados.
Perto laranjais de longo gesto.
Pássaros d’água desenham a brancura
do linho rente à margem.
Pinhais azuis voadores
são início de viagem
quando cisnes de surpresa
vêem abrir nova cor.
Tornam-se então todos roxos
com musica de flor seca
ou de palmeira inventada.
O lago d’água invisível
perfuma a noite de treva
em cheiro matricial.
Adão Eva, nem tão pouco original.
Há um barco que procura
o cais da bruma azulada.
Quando a bruma perde a cor
o barco não é mais nada.
Desaparecem os cisnes
cai um poema na estrada.
M.G.
Estendia-se o espaço
movimento abria novos horizontes
o tempo inexorável laço
unia os homens as fontes.
Água branda ao de leve afastava
nascente pressentida
na força que a levava.
Essência em forma de vida
tinha estranho colorido
de passos, de mais passos
até serem vórtice ou sentido
de intermináveis traços.
Assim a água foi seguindo
sob luz vertical que a ilumina
água de minha sede Portugal
na fome de poeta e de menina.
M.G.
Aqui é o sitio do amor
se vieres bater à porta
com olhos e coração
a bagagem pouco importa
encontrarás cama e pão.
Pão cem vezes repartido
um pedaço será teu.
Pão em forno colorido
na cor que o amor lhe deu.
Bate à porta e entrarás.
Protegido contra feras.
Casa a caminho da Paz
onde não entram panteras.
Aceita a mão que se estende!
Não está vazia! Ilusão,
mesmo se o parece entende
está cheia de coração.
Se o caminho que é da casa
atravessar o que é teu
verás a lareira em brasa
que de pronto se acendeu.
Humano irmão, não hesites
tudo o que aqui há é teu
pois nunca haverá limites
para a luz de Prometeu.
M.G.
Não quero saber se isto que sinto
é mágoa raiva dor angustia ou morte
ao esmaecer das tinas em que pinto
o tempo sem medida eterno, forte.
Foram caindo as forças que eram minhas
até meu gargalhar escureceu.
Volto pra trás meus olhos prás tardinhas
na poalha de luz que ‘inda era eu.
Adormeceram-me os olhos coloridos
o céu azul perdeu-se rente ao mar
mas oiço ainda bater nos meus ouvidos
o mundo sem maldade por criar.
Embalada na sombra duma esperança
conheci o sentimento mais fraterno.
Há no meu peito ainda essa criança
nascida em mãos de luz no frio Inverno.
Meu canto agora é uma despedida
do mundo que existiu dentro de mim!
Ao cair morta como a ave ferida
levo meu sonho comigo até ao fim.
M.G.
Olho a paisagem invento
maré de olhar fugidia
na sombra do pensamento
és e não és quem eu queria.
És e não és. Apareces
ilusão dúbio sentido
nas palavras esmoreces
tempo, do tempo perdido.
Olhar de água, movimento
obscura transparência
adejar, sabor a vento
pousio de terna inocência.
Sobressalto na viagem
sem porto onde chegar.
Vou levada na voragem
de teus olhos cor do mar.
M.G.
Me sonho antiga balada
perdida composição
ficou-me no pó da estrada
esquecida em meu coração.
Nem a luz da alvorada
veio depô-la em minha mão.
Tinha timbre de oceano
na cor azul do trigal
em vagas de desengano
espraiando no areal
minha vida ano após ano
areia, pó, afinal.
Em som grave a procurei
uma citara a tangia
porque caminhos andei
que nem ao longe a ouvia?
Na voz que tinha chorei
mas nada ma devolvia.
Oh minha balada antiga
meu terno sonho de infante.
Não há palavra que diga
a voz pura que te cante.
Oh velha balada antiga
lembrando o dia distante.
Nunca tornarás a ser!
Como eu de mim me perdi...
mais ninguém sabe tanger
o que só eu aprendi.
Tanto a vida faz doer
que nem tão pouco a vivi.
M.G.
RONDEL DE AGOSTO
Às nuvens subia aroma de mosto
os bagos pisados no lagar escorriam
devolvendo ao céu quente sol de Agosto
no vapor do álcool vinhedos gemiam.
De aves forasteiras os cantos se ouviam
as mulheres cantavam e da cor do rosto
devolvendo ao céu quente sol de Agosto
no vapor do álcool vinhedos gemiam.
No regresso a casa após o sol posto
os corpos cansados, as pernas tremiam
levavam nos lábios memória do gosto
das uvas esmagadas que o lagar enchiam.
Às nuvens subia aroma de mosto.
M.G.
Oh noites azuis do oriente
oh noites entre todas as mais belas
oh noites onde o céu é transparente.
No brilho distante das estrelas
o véu de luz ilumina o deserto
oh noites de mito e aguarelas.
Meu olhar de vos anda tão perto
que se inunda de luz e de magia
oh noites a espelhar o céu aberto.
Ao longe me trespassa a nostalgia
por ter deixado em vos o meu olhar.
Na noite ocidental fico a espreitar
o brilho que de noite lembra o dia.
M.G.
Aos Casais das Comeiras-Aveiras de Cima
aos seus magníficos filhos e filhas
uma das minhas humanas escolas da vida
da solidariedade e da amizade sã e fraterna
Lininha
Guardo num cofre d’oiro pequenino
caminhos de sol a gargalhar
quando havia o timbre cristalino
na dança de vinhedos ao luar.
Níveo corcel espalhava ao vento a crina
ainda hoje presa ao meu olhar
azul o céu esvaia-se no ar
sobre o poeta com alma de menina.
Alvejava o moinho, asas de brim
perdido na tormenta da distância
minha longínqua torre de marfim.
Na acre caminhada para o fim
tempo loiro, distante, da infância
eterniza a imagem que há em mim.
M.G.
Anda à solta a ventania
veio dos confins do mundo...
passa por nós assobia
na voz que nos angustia
o coração num segundo.
Quem abriu a porta ao vento
pra gritar em iras tais?
Atravessou o momento
dos sonhos imateriais.
Quando é apenas aragem
sabe-nos bem e perfuma
o indicio de viagem
com ilusão de caruma.
Mas se for brisa afinal
tem cheiro acre marinho
paisagem de vendaval
em constante torvelinho.
M.G.
OH meu amor que fugiste
para não mais regressar
sem pensar na dor que existe
na ternura a soluçar.
Oiço uma fonte a gemer...
ou será a minha voz?
Não mais sei reconhecer
o sonho que havia em nós.
O ribeiro refulgente
saltita como saltei
quando menina contente
não sabia o que hoje sei.
Se agora a vida me dói
lembro ainda com saudade
versos, canções que cantei
menina de pouca idade.
M.G.
À Claudia, a brincar
Deste-me o cheiro da rosa
ofereci-te um caramelo
vermelha era a flor vistosa
o bombom era amarelo.
Deste-me o cheiro da flor
depois o cheiro fugiu
provaste o doce sabor
que se desfez fio a fio.
Levaste contigo a rosa
flor roubada num jardim...
mas sendo também gulosa
rebuçado viu seu fim.
Em suma... tu emprestaste
o perfume dum segundo
enquanto saboreaste
o doce até ao seu fundo.
M.G.
RONDEL DO MEDO
À noite o luar sobre arvoredo
desenha fantasmas formas irreais
mas a campesina tremia de medo
sentindo prendê-la traços vegetais.
Nos ninhos dormiam leves os pardais.
Trouxe-os o poente, de longe tão cedo...
nem a sua voz se escutava mais.
Um monstro nascia de enorme penedo.
Tudo era mistério na noite em segredo
estreitos os caminhos sobrenaturais
trazendo à memória a voz do bruxedo
que ouvira em pequena no lar de seus pais
nos serões antigos o único enredo.
M.G.
RONDEL DA MORTE
Fugiste vulto amigo
na noite solitária
invadiu meu abrigo,
da morte, a emissária.
Minha força contrária
quer resistir ao perigo.
No triste lar antigo
resisto temerária.
Pelo velho postigo
a luz incendiária
rejeita o inimigo...
voz de funérea ária
aponta-me o jazigo.
M.G.
OH olivais
vindos de trás...
sois vos que herdais
de nossos pais
símbolo de Paz!
Oh olivais
do esforço antigo
de nossos pais
sois vos que herdais
seu braço amigo
Oh olivais...
olivais de Paz sois o sustento
do magro caldo camponês
vos que sois alma, força e alento...
a vossa voz segue a do vento
a olhar o mundo de lés-a lés.
Olivais da Paz sois o tempero
da triste mesa do camponês
trémula luz no desespero
do seu cansaço, do frio severo
que os vai forçando mês após mês.
Oh olivais campo de esperança
vindo de outrora como tributo.
Dom ao futuro, na confiança
por cada vida cada criança!
Esforçada mão sem ver o fruto!
Oh olivais enluarados
folhas de prata a refulgir
pequenos frutos espezinhados...
liquido sol enche sobrados
quando a fadiga manda dormir.
M.G.
Nada tornará a ser!
Fugiu o riso de outrora
quando vi amanhecer
a minha aurora.
O tempo não volta atrás...
nossos mais belos momentos
na alegria que é paz
efusão e sentimentos...
tudo se esfuma no tempo
cor ardente esmaecida...
à volta de nós o vento
gira...leva-nos a vida.
Será apenas o vento
comparsa amargo do tempo
ou o nosso sentimento
ainda na inocência...
ao ser traído não quer
escutar o som que ainda trás
raízes de esquecimento?
Nada tornará a ser!
A morte que é ainda vida
leva-nos tudo o que houver
da nossa infância perdida.
Os luminosos sorrisos
olhos humanos bondosos
que nos eram tão precisos
a guiarem-nos ditosos
entre mil cores paraísos...
nesse perfume de espanto
horas e dias de encanto
de gargalhadas, de risos.
Hoje o silêncio é o pranto
os mortos, não mais estão vivos!
M.G.
Na noite amarga
nossa voz larga
antigo canto.
Distante, longe
a agua foge
fonte de pranto.
Voz de guitarra
ou de cigarra
noite de Verão
a voz desgarra
luz ao serão.
Vêm poetas
fulgem cometas
caem estrelas
vozes secretas
são indirectas
cor de aguarelas.
Passam os dias
em nostalgia
cores outonais
paisagem fria
na penedia
calam pardais.
Há sons marinhos
pelos caminhos
do voo breve...
onde os espinhos
rasgam os ninhos...
ai, fria neve.
M.G.
Saber se a sede do verso
esta fome do poema
o sonho vago disperso
que nos dói, nos envenena
são vozes do universo
captadas pelo fonema.
Saber donde vem a fala
em que o poema interpreta
o mistério que se exala
da sua origem secreta.
Dão-lhe nome: inspiração.
Dom ou dádiva mas donde
que fonte nos traz à mão
o segredo em que se esconde?
Pétalas d’água alinhadas
na incerteza de ser.
Formas que foram criadas
pra tentar compreender.
M.G.
OUTRA
Ser jovem, viver no campo
mas no campo verdadeiro.
Ter um poço um muro branco
um pomar de forte cheiro.
Ter uma pequena horta
um burro de olhos de brilho
ter em casa aberta a porta
fazer pão, ver rir um filho
ter rosas e sardinheiras
vermelhas como o sorriso.
Na sombra das oliveiras
paz de térreo paraíso;
ver à distância o pinhal
ter pinhas, juntar caruma
ver no vento o caniçal
a baloiçar cada pluma.
Escutar ao amanhecer
e no decorrer do dia
asas a enaltecer
as vozes da alegria.
Ter uma ovelhinha loura
mais uma cabra castanha
ser alegre como outrora
ágil, romântica, estranha...
ir às cores do sol poente
ou ao azul da manhã
buscar o verso veemente
cantar a vida aldeã.
Tornar a sentir-me gente.
Fraterna, amiga, pagã.
Ver na alvura da mesa
pão para ser repartido
oferta da natureza
em minha mão construído.
Ser a mesma gargalhada
expontânea, boa, sincera,
à frente ver ainda estrada
ser ainda primavera.
Dar o bom-dia a quem passa
no costume camponês
olhar o sol na vidraça
dia-a-dia mês a mês.
No dia tempestuoso
saber, na chuva inclemente
o segredo luminoso
do germinar da semente.
Ser feliz de amar a vida
ter o amor companheiro
que dá alegria à lida
à noite, o calor, o cheiro.
À lareira no serão
ouvir os contos antigos...
ao pé a família, o cão,
a voz doce dos amigos.
Ser vertigem sensual
mas com alma de menina.
Enfim, se eu tal e qual
na força de cada rima!
M.G.
Voam besouros louros
ao sol de estio.
Das sardinheiras
malvas vermelhas...
perfume forte
envolve o ar.
Na estrada cantam
as raparigas
vão a passar.
Rubros canteiros
cachos vermelhos
que o tempo fez.
Voam abelhas
de asas de luz.
No bebedouro
do poço velho
a água aquece
o céu azul.
Voam os tordos
pinhais oferecem
em grito verde fruto,
semente...
o cheiro forte
resina à sorte
do fogo sempre.
Ágeis pardais
voam prá sombra
ali vizinha.
Há olivais,
miniaturais
sois da noitinha.
A vinha encobre
figueiras tortas
ressequidas
mas de seus braços
pendem pedaços
do mel das vidas.
Milho na eira,
o malho dorme
com o calor.
Cantam os dias
as cotovias,
será de amor?
A terra agreste
gretada veste
seu burel duro.
Só à tardinha
ao fim do dia
sob o ar puro
virá a água
correr os regos
de leira em leira.
Novo perfume
acende o lume
do anoitecer.
O sol no cume
vai-se escondendo
está a descer.
O céu escurece
a lua tece
seu branco véu.
Riem estrelas
loiras e belas
enchendo o céu.
Ao longe o mocho
é o relógio de adormecer.
Cantam encantam
os rouxinóis
no ar levantam
claves que espantam
abrindo sois.
Há melodia
de noite, dia,
o lavrador
no seu cansaço
mal vê o espaço
medido em dor.
O dia o deita
dia o levanta!
Na noite à espreita
da alvorada
o galo canta.
M.G.
AO MUNDO em Memória de Meu Pai
A Força da Poesia
Poesia guerrilheira
voz firme contemplativa
alastrando a terra inteira
na sua força expressiva.
Poesia que diz não
para construir o sim
quando repartido o pão
puder haver Paz enfim.
M.G.
ALERTA
Grita filha
há uma aranha
na brancura da parede
que peçonhenta, tamanha
vai tecendo a sua rede.
Grita filha!
Essa fobia
é protecção natural
contra a aranha sombria
que tem o símbolo do mal.
Grita com todas as forças!
Grita porque há mesmo perigo
essa aranha, uma cruz negra
é o pior inimigo.
Por meu amor não te cales!
Grita filha é tua mãe
que te impele pra que fales...
contigo grita também!
Essa aranha que se estende
tem o passo marcial
com fúria que surpreende
o incauto em voz fatal.
Grita filha
o bicho imundo
sai vertiginosamente
da sombra vinda do fundo
em veneno de serpente;
tal a jibóia medonha
enrola-se, abraça o mundo
para ir crescendo em peçonha.
Introduz-se em toda a parte
tudo corrói e desfaz
é inimiga da Arte,
do Ser Humano, da Paz.
Grita filha mas tão alto
num grito tão verdadeiro
que desperte em sobressalto
o que não quer ver primeiro.
Essa aranha pestilenta
odeia a própria cultura
em fogueira que alimenta
livro após livro censura.
Opõe à humanidade
a sua força brutal;
por onde ela passa invade
mata o constitucional!
É um monstro repelente:
primeiro ataca o mais fraco
para ir seguidamente
oculta em cada buraco
destruir a liberdade!
Inimiga da diferença!
Grita minha filha grita
faz ouvir tua presença.
Aponta o bicho feroz
mostra-o, sacode os amigos
com a força da tua voz!
Grita esse enredo de perigos!
Grita filha! Desta vez
é um grito racional
porque essa aranha é o não
ao direito universal.
Sem medo abre tua boca!
Grita alto! Grita forte!
Porque toda a força é pouca
para lutar contra a morte.
Grita, grita minha filha
não te cales nunca mais
não se veja outra bastilha
prender os próprios jornais!
Que teu grito seja infindo
circule dê volta ao mundo!
Jovem voz entusiástica
unindo o povo profundo
contra a bandeira suástica.
M.G.
A Praça, a Praça é do povo
como o céu é do condor.
CASTRO ALVES
Vem desce à rua
poeta meu irmão!
No mundo a plebe
continua
nua, vem
traz lhe o teu poema
coração.
Lembra Castro Alves
verdadeiro!
Voz dorida, sincera.
Ele foi o primeiro!
Nós continuação
do que ele era!
São precisos versos d’emoção!
Versos pra despertar
a letargia de cada coração
vem prá rua cantar!
Recorda o menino que dizia
que a praça era do povo!
Tal como nesse dia
acordemos à voz da poesia
a esperança, o mundo novo!
A nossa voz, irmãos de poesia
será circulação universal!
Românticos poetas, cada dia
terá de ser semente triunfal!
Há senhores, escravatura
hoje diferente, agrilhoando a voz
o pensamento!
Castro Alves virá à nossa frente
mostrar-nos a luta do presente!
Vem desce à rua
de braço dado não temos medo
o sol ilumina-nos o dia
nos confins do degredo!
Escuta a voz
do poeta que em mim fala
espelho da tua voz!
Não é poeta aquele que se cala
poetas somos nós
que iremos avançando...
abrindo a noite
incendiá-la em luz!
Vencendo a lama atroz
que o mundo exala.
Para abrir céus azuis.
Vem! Vamos despertar a humanidade
em cada ser humano!
Atravessemos os campos a cidade
dia a dia, ano a ano!
Então nosso cantar terá sentido
Castro Alves condor
trás em versos o povo reerguido
saiamos do torpor.
Poetas:
nossos versos, o poema
tem seiva de vida secular
vamos quebrar aos povos a algema
que agrilhoa o pensar.
É chegado o tempo de outra luta
elevemos a esperança
à certeza final que nos escuta
como atenta criança.
Unidos braço a braço, forte voz
faremos ecoar no infinito:
findou o reino do algoz
só ele é o proscrito!
Vamos abrir os cofres onde pão
sem serventia não tem outro valor.
Que repartido dê a cada irmão
a dignidade, semente do amor!
Voltemos a dar à poesia
a força da voz dos oprimidos!
Poetas saiamos para o dia
não queremos sofrimento nem gemidos!
Esse mundo fraterno que Jesus
ao mundo prometeu
será de Paz compreensão e luz
entre crente e ateu.
A poesia tem o dedo apontado
contra o usurpador.
Não queremos nunca mais o pão fechado
não queremos ver mais dor.
Poetas!
Castro Alves está presente!
Vamos seguir-lhe o passo!
Nunca mais nos morra friamente
um irmão de fome, de cansaço.
É urgente mostrar à juventude
a beleza do mundo!
Acabando de vez com a turpitude
nós trazemos do fundo
humanos fraternos sentimentos
para cada criança
o mundo pacifico criemos
fraterna luz de esperança!
Então voltará a alegria
e o terceiro milénio
será enfim
o mundo da harmonia
em nova transfusão de oxigénio!
Respiremos de paz!
Consciência justa
nada tem a temer
venha do mundo inteiro
a voz que faz
a nossa voz romper!
Do grito solidário futurista
o mundo vai nascer.
M.G.
Por um antifascista morto
quatro se levantarão!
Navio que ao chegar ao porto
deixa entrar luz no porão.
Assim surgirão mil vozes
no verbo multiplicar
denuncia contra os algozes
contra a sede de matar.
Na voz do antifascista
há gritos de Liberdade
pra que cada um resista
e seja fraternidade.
Que no amor mais profundo
os povos sejam irmãos
para que haja Paz no mundo
com todos de mãos nas mãos.
Que nos importa que o sol
que nos dá tanta alegria
seja diferente arrebol
em cada pele que nascia.
Cada terra, continente
tem sua própria cultura.
Cada um de nós diferente
mas no espirito abertura!
Sermos quem somos, tal qual...
mas ver no que os outros são
um direito universal
em usos, religião.
Mas sempre o mesmo respeito
deve unir um povo a outro,
desdenhando o preconceito
inventar o mundo novo!
Não ter medo de falar
de trocar opiniões
cada um de nós a escutar
as mais diversas razoes.
Mas a querer compreender
sem nunca impor partilhar,
pra podermos ver nascer
dia de amor a brilhar.
Por isso não há quem vença
o que morrer convencido
por cada morto apareça
um povo de olhar erguido!
Não passará o fascismo
onde couber a razão
abramos ao altruísmo
as portas do coração.
A batalha será ganha;
a Paz será a vitoria!
Esse verme, ou essa aranha
não mais entrarão na historia.
M.G.
Meu menino na distância
uma pomba de ternura
virá sobre tua infância
numa voz suave, pura.
Meu doce terno menino
numa canção de embalar
venho dizer-te baixinho
que o sol vai nascer, brilhar.
Água fresca, transparente
virá trazer-te a beber
paz que o coração te pede
oh meu menino a crescer.
M.G.
Meu amor de olhos marinhos
onde eu queria naufragar
mas desconheço caminhos
que me levem ao teu mar.
Branco luar se desata
do teu olhar negro, escuro
como cascata de prata
a iluminar o futuro.
Navego nas tuas mãos
ardentia de desejo
entre cânticos pagãos
e a musica dum beijo.
Mas o teu olhar ternura
inunda-me novamente.
És na noite azul, escura
o contaste refulgente.
Meu amor, luz do meu dia
que outro igual amanhece
na tua pele luzidia
é que meu corpo acontece.
M.G.
O velho trémulo
de frio caiu
entre o rebanho
está tão mudado
há tanto tempo
subindo o prado.
No lar família
aconchegada.
A voz da Emilia
também cansada
espera o pastor.
Longa jornada
desde o nascente
ao sol a por.
A noite avança.
Uma criança
chora no berço.
Ao canto, só
a velha avo
reza seu terço.
Um vago medo...
pressentimento?
Quem o dirá;
a noite cedo
fecha o segredo
escurece já.
O pastor não vem
ouve-se alguém
pedir ajuda.
A avo triste
no escuro assiste
que povo acuda.
Hei-los em bando
trevas trepando
na serrania
na voz do berço
sobe a do terço
em agonia.
O pastor caído
sem um gemido
regela agora
só o latido
do cão amigo
vai noite fora.
Como sinal
se ouve afinal
o cão ao longe.
No matagal
o povo acorre
como quem foge.
Erguem do solo
levam ao colo
para seu lar.
Ouve-se Eolo
por toda a serra
em frio uivar.
Chegado a casa
à lareira em brasa
é posto ao pé.
Chora a família
geme a Emilia
que morto o vê.
Insana lida
apenas vida
magro sustento!
Na despedida
na voz do cão
uiva a do vento.
Fim do cansaço
gélido abraço
o pastor estreitou.
Descai-lhe o braço
parou o passo
já descansou...
A pobre herança
de quem se cansa
a trabalhar
é a criança
na mesma dança
que irá girar.
Tanto trabalho
desaconchego
tanto labor...
eterna bulha
pra encher a tulha
ao lavrador.
M.G.
Formulam-se interesses
e leis que os defendem
noções correspondem
à tónica incerta.
Balanço quebrado
flutua também
no lago gelado
da base de alguém.
Compõem os ritmos
exemplos, memórias
por fora das silabas
de nossas historias.
Mas se musicais
nos falam os dias
não voltarão mais
as vãs cotovias.
M.G.
Meu amor, sonhei contigo
mas parei entristecida
vejo em teus olhos o perigo
que condena minha vida.
Tal perigo suave fora
se abrandasses teu andar...
passaste foste-te embora
aqui fiquei a sonhar.
Levaste na caminhada
todo o tempo que era meu...
nas aos não me ficou nada
tudo de mim se perdeu.
Ficaram sete palavras
desenho a fogo d’inferno...
no meu sofrer vens e lavras
poemas no meu caderno.
Meu amor
sonhei contigo...
minha dor
d’entontecer
sei que perdi
meu amigo
ou não o cheguei a ter.
Meu amor
na solidão
surgiram rubros punhais
abrindo meu coração
às panteras aos chacais.
Fugiu-me o sonho de amor.
Parei à margem da vida.
Desfolhada como flor
pelo vendaval perseguida.
M.G.
A noite bate à porta.
Amargo exílio
quando o dia findou
a luz não mais transporta
o tempo que voou.
A sombra lenta vence
o dia que escurece.
Na mão do poeta adormecido
está à espera um verso
ou um gemido.
Seu olhar
de contemplações repleto
parece serenar em sono quieto.
Mas no sono aparente
dessa visão tranquila
agitam-se fantasmas
em saltos de arlequim.
Há vestígios marinhos
alinhando-se em fila
caminho entre escarpas
sem chegar ao fim.
Mas o poeta dorme.
Enquanto dorme escreve
poemas corpóreos
de vozes minerais.
vê deslizar por ele
entre restos de trapo
as famélicas fauces
entre ervas animais.
Há um dedo estendido
como livro futuro
que nunca conseguiu.
Pálido poeta
a tropeçar no escuro
a desenhar nos ares
sons que não ouviu.
Sabe ser responsável
como se rio de tinta
navegasse veloz
entre quentes palavras.
O poeta no sonho sente
faltar-lhe a voz
entreabre os olhos
à procura da fala.
A um canto do quarto
há um baú d’estanho
que viera do tempo
através dos avos
baú entreaberto
para universo estranho
começo do silêncio
a espelhar-se na voz.
Há um gesto d’infância
no olhar que procura
o fazedor de versos
vai atras da verdade
a tropeçar nas rochas
a tropeçar na sombra
que formam o inicio
de toda a eternidade.
M.G.
Falar de ti
dizer quem és
que percebi
tuas marés
aonde vais
donde vieste
prantos e ais
quantos tiveste.
Quem adivinha
se há no trovão
a carga eléctrica
capaz de ser
ternura ou pão.
M.G.
Água pura, breve passa
pra não voltar nunca mais.
Meu grito se despedaça
navio onde está teu cais.
M.G.
Inventei outro ser. Olhos humanos
inexistentes, apenas pressentidos
andei-os soletrando em desengano
no subúrbio dos sonhos aluídos.
Talvez o fantasma transparente
deixasse atravessar em palidez
a luz vinda de longe opalescente
que no ar morno em sombra se desfez.
Ano após ano, fui construindo o dia
verídico, intenso, universal
mas o olhar que nos meus olhos via
ia perdendo o brilho natural.
Na escuridão mais nada deslumbrava
essa visão, imagem destruída...
mas quanto mais a luz me iluminava
menos via brilhar a minha vida.
M.G.
Mágica noite de encanto
donde vem a tua voz
feita de sonho, de pranto
a sombra que é o teu manto
soluça dento de nós.
Estrelas perfumam com oiro
a nocturna solidão
o dia esconde-se loiro.
Escondeu o sol, nasce a lua
arco de castelo moiro
emoldura a noite nua.
Dançam névoas pelo céu.
O azul oriental
é o teu olhar no meu
tão escuro que me faz mal.
O mar desenha uma vela
de nau há muito distante...
de nau ou de caravela
que segue rumo a Levante.
Ondas que vêm de manso
acariciar a pele
do sonho que sem descanso
vai mis longe do que alcanço
na brancura do papel.
Meu sonho! Todo em lonjura!
Purpúrea acende-se a tarde...
se é febre, raiva ou loucura
têm a voz da ternura
que em meus olhos em ti arde.
M.G.
Numa caixa colorida
de suave tom perfumada
descobri a minha vida
em fita de seda atada.
Desfiz o no que ela tinha
dei-lhe asas, fi-la voar
vi-a partir andorinha
negro voo sobre o mar.
Desde então a minha vida
a mim nunca mais voltou.
Na areia, entristecida
espero-a ainda não poisou.
M.G.
Fazedora de versos esquecidos
quem se lembra de mim?
Tantos versos que sentidos
foram início e o fim.
Na noite assustadora
nenhum verso me aquece
ou ilumina
o tempo dia a dia vai embora
perdeu-se da menina.
Transparente, invisível
quem me vê
Ou sabe aonde vou?
Eterno porquê
que a vida fecundou.
M.G.
Desperto sou água mansa
desaguo no olhar
do que há em mim
da criança
que vê afundar a esperança
de novo dia raiar.
Dissipou-se entre tentáculos
em translúcida ameaça
falam distantes oráculos
prenuncio duma desgraça.
Mas vem a água fluindo
de Delfos até aqui
traz-me de Apolo esculpido
cada verso que escrevi.
Paro. Colheita de sons
de imagens de poesia.
Na hora dos semitons
há nostalgia.
M.G.
Falei do mar dos teus olhos
da aprendizagem do sol
vi arremessar a escolhos
o voo dum rouxinol.
Disse palavras de Verão
na surpresa do Inverno
esvaídos em tua mão
os versos do meu caderno.
A longa estrada que um dia
te viu subir para mim
era uma álea perdida
árvores de outro jardim.
Mas na distância do tempo
que nos afasta de nós
perdeu o sol o alento
que nos acendia a voz.
M.G.
Nas mãos de meu amigo
deito o rosto
de muitas madrugadas
e do medo.
Descanso os uivos internos
de luas por diluir.
Ao encontrar-me comigo
entre mãos do meu amigo
sou mais eu!
Alegre ou triste
sinto que tudo o que existe
girando em volta de nós
espelha o mundo que persiste
na minha, na sua voz.
É nas mãos de meu amigo
que descubro a dimensão
do verso escrito em que digo
haver nos olhos do pão
esta fome que não finda
fraterna, de liberdade
numa fecunda seara
pra toda a humanidade.
M.G.
Quando havia sorrisos transparentes
como o fluir de águas de cristal
quando meus olhos eram inocentes
ingénuos do que é bem ou do que é mal
minha voz tinha o timbre de luz
saltitar de ideias movimento
agora oiço na minha voz a voz do vento
angustia de caminhos percorridos
a dor, a mesma dor
a procurar sempre uma resposta
porquê inocente doutra infância
na imposta solidão.
Tempo nascente ao sorriso do sol.
Hoje são doridos os meus passos
olhos que se negam não são meus
se a delirar por ti abro eus braços
neles sei que não terei os teus.
M.G.
Duas tranças minha avo
teve no tempo menino
seus irmãos eram crianças
as suas vozes um hino.
Os búzios vinham de longe
olhos de pai marinheiro
historias no tempo que foge
entre as águas e um veleiro.
Quase um século, um milénio
quem sabe o tempo medir?
Mais vidas oxigénio
em cada dia a fugir.
Rumo ao sul. Ou polo norte
a tarde avança fremente
levada por vento forte
transforma os outros na gente.
Mas a vida borboleta
nas tranças de minha avo
vai seguindo a linha recta
do dia de ficar só.
M.G.
pergunto ao vento que passa
noticias do meu pais.
Lisboa anda em Paris MANUEL ALEGRE
Tejo, Sena
nem sei bem como são
a cidade repleta
do cantar do poeta
que vai por outra mão.
São férias? Talvez não.
Este perfume estranho
é mais uma canção
ou é mais um desenho.
Colorido, cinzento?
O que sei afinal
é que nem sempre o vento
é fúria ou vendaval!
M.G.
Eu na areia loura
olhava-te em altura.
Tu olhavas o céu
tão enorme lonjura
do teu olhar ao meu.
Eu na areia fina
o teu olhar buscava
eu, era uma menina
tu, um deus que passava.
Nos teus olhos pardos
à cor do mar já feitos
faiscavam os dardos
que os meus tinham desfeitos.
M.G.
Um cisne verde
desliza sobre a erva.
Tudo é branco e azul
numa planície estranha
em dedos de água gelados.
Perto laranjais de longo gesto.
Pássaros d’água desenham a brancura
do linho rente à margem.
Pinhais azuis voadores
são início de viagem
quando cisnes de surpresa
vêem abrir nova cor.
Tornam-se então todos roxos
com musica de flor seca
ou de palmeira inventada.
O lago d’água invisível
perfuma a noite de treva
em cheiro matricial.
Adão Eva, nem tão pouco original.
Há um barco que procura
o cais da bruma azulada.
Quando a bruma perde a cor
o barco não é mais nada.
Desaparecem os cisnes
cai um poema na estrada.
M.G.
Estendia-se o espaço
movimento abria novos horizontes
o tempo inexorável laço
unia os homens as fontes.
Água branda ao de leve afastava
nascente pressentida
na força que a levava.
Essência em forma de vida
tinha estranho colorido
de passos, de mais passos
até serem vórtice ou sentido
de intermináveis traços.
Assim a água foi seguindo
sob luz vertical que a ilumina
água de minha sede Portugal
na fome de poeta e de menina.
M.G.
Aqui é o sitio do amor
se vieres bater à porta
com olhos e coração
a bagagem pouco importa
encontrarás cama e pão.
Pão cem vezes repartido
um pedaço será teu.
Pão em forno colorido
na cor que o amor lhe deu.
Bate à porta e entrarás.
Protegido contra feras.
Casa a caminho da Paz
onde não entram panteras.
Aceita a mão que se estende!
Não está vazia! Ilusão,
mesmo se o parece entende
está cheia de coração.
Se o caminho que é da casa
atravessar o que é teu
verás a lareira em brasa
que de pronto se acendeu.
Humano irmão, não hesites
tudo o que aqui há é teu
pois nunca haverá limites
para a luz de Prometeu.
M.G.
Não quero saber se isto que sinto
é mágoa raiva dor angustia ou morte
ao esmaecer das tinas em que pinto
o tempo sem medida eterno, forte.
Foram caindo as forças que eram minhas
até meu gargalhar escureceu.
Volto pra trás meus olhos prás tardinhas
na poalha de luz que ‘inda era eu.
Adormeceram-me os olhos coloridos
o céu azul perdeu-se rente ao mar
mas oiço ainda bater nos meus ouvidos
o mundo sem maldade por criar.
Embalada na sombra duma esperança
conheci o sentimento mais fraterno.
Há no meu peito ainda essa criança
nascida em mãos de luz no frio Inverno.
Meu canto agora é uma despedida
do mundo que existiu dentro de mim!
Ao cair morta como a ave ferida
levo meu sonho comigo até ao fim.
M.G.
Olho a paisagem invento
maré de olhar fugidia
na sombra do pensamento
és e não és quem eu queria.
És e não és. Apareces
ilusão dúbio sentido
nas palavras esmoreces
tempo, do tempo perdido.
Olhar de água, movimento
obscura transparência
adejar, sabor a vento
pousio de terna inocência.
Sobressalto na viagem
sem porto onde chegar.
Vou levada na voragem
de teus olhos cor do mar.
M.G.