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terça-feira, 10 de setembro de 2024

claridade

 

À tua espera em meus lábios há trigo

em minha mão paisagem vicejante.

Na minha voz há o cantar de amigo

nascido no inicio do instante.


Sobre a colina o feno dorme louro

sorriso solar vai-se esvaindo

o teu corpo distante meteoro

acena-me de longe e vai fugindo.


À tua espera nascem-me manhãs

nós olhos que entardecem sem saber

brotam cantatas rubras e pagãs.


Até à claridade me doer

as noites eternizam-se

proximidade que nunca chega a ser.

 

 

 Marilia  Gonçalves

 

 


 



mágoa e tristeza

 

Se eu fosse aquela

que os livros diziam

ser a formosa 

consagrada estrela

o teu poeta em pó se tornaria

cabeleira fulgente de cometa.


Se eu fosse aquela

cujos olhos d’oiro

viriam acender

os sons marinhos

cada poema seria 

uma aguarela

abrindo o infinito

em mil caminhos.


Se eu  fosse aquela

de lábios de rosa

a fronte ainda áurea de ilusões

se eu fosse aquela, amor 

se fosse aquela

seria a vida ardente das canções.



M.G.


És tu homem o sonho que abraço

sem um raio d’esperança sequer.

Nem sorris ao meu seio de mulher

só a dor a tristeza o cansaço

nem um som flutua no espaço.


Só de ti me vem mágoa e tristeza

estes olhos  inúteis sem ver

doce chama por ti sempre acesa

mesmo ténue não a vejo ser,

fogo-fátuo da minha incerteza. 

 

Marilia  Gonçalves 

 

 


 

 

 




À voz da tua voz desconhecida

 

À voz da tua voz desconhecida

perdi-me pela cidade

cada rua uma avenida

cada subida vontade.


Ouvi o som que marinho

alongava meu olhar

ouvi-o ainda baixinho

nós meus olhos aumentar.


A cidade à luz erguida

movia-se crepitava

eu, prosseguia perdida

na tua voz viajava.


Vi praças e avenidas

largos jardins e pracetas

mantinham-se em luz escondida

minhas velhas tranças pretas.


Menina mulher ternura,

corro a cidade por ti

distância sonho lonjura

nem em pranto desisti.


Procurei a manhã clara

âmago da solidão

na ar acenava rara

a forma da tua mão.


Olhei à beira da estrada

mas só vi esperança passar

meu amor fiquei parada

a procurar teu olhar.


Cor da minha trança antiga

os teus olhos que persigo

desde o tempo de criança

pra só morrerem comigo.

 

 

Marilia  Gonçalves

 


 


deixaste a Primavera

 

Foste embora

deixaste a Primavera

repleta de pardais 

e andorinhas.

Meus olhos voavam irreais

poentes violetas à tardinha.

Partiste 

o sol foi-se contigo

árvores acenavam triste adeus

borboletas de sol não iluminam

a solidão que em mim escureceu.

Não sei se são teus olhos que persigo

nem tão pouco se és a tal imagem

estátua de proa de meu navio antigo

que naufragou sem mastros nem coragem.


Serás tu afinal que em mim procuro

Ou é teu olhar que a noite habita

teu olhar, feito de céu tão escuro

que só  abismo atrai e precipita.

Não sei se és tu quem capturo

na ansiedade voraz da minha escrita.

 

 

Marilia  Gonçalves




Vem de longe o teu perfume

 

Vem de longe o teu perfume

num sabor a oceano

há nós teus olhos de lume

e no teu corpo africano

o mistério que resume

o meu espanto lusitano.


Dou passagem à ternura

ao calor do nosso afecto

velejo à tua procura

num continente indirecto.


Sou mais tua do que és meu!

És tu o conquistador

és o meu país meu céu

meu príncipe meu amor

tudo o que há em mim é teu.


Nenhum outro deus conheço

a ti me ofereço, me dou.

Meu fim e meu retrocesso

homem que me semeou.


Por ti voltarei a ser

cedo à lei do teu amor

pra ti eu nasci mulher.

Nas tuas mãos de escultor

terei a forma que houver 

no teu olhar sonhador.

 

 Marilia  Gonçalves

 


 

 

 




Nasce um poeta

 

Nasce um poeta

a cada instante

como cometa

sempre constante

nasce um poema 

imensidão

parte a algema

da solidão.

Poeta versos

sonhos etéreos

andam dispersos

entre mistérios.

Afunda os olhos

 na poesia

liberta a alma

 da invernia.

Choras e cantas 

sempre a escrever

há sempre tantas 

formas de ver.

Nasce um poeta 

morre uma estrela

na voz secreta

de intima tela.


Luz alumia

a dolorida 

contraditória

historia da vida.

 

 Marilia  Gonçalves

 




Último discurso do presidente do Chile, Salvador Allende, 11 de Setembro...1973

. 

            INESQUECÍVEL SALVADOR ALLENDE



Uivam os ventos

 

Uivam os ventos

da solidão

abrem-se gestos

fecha-se a mão.

O vento brame

gira insistindo

vêm as sombras 

adustas rindo.

Noite de medo 

de solidão

voam protestos

de minha mão.

A tempestade

vem espargindo

mil pensamentos

 de mim saindo.

Não há abrigo

pra quem perdeu

o seu amigo

por entre breu.


Doem as asas à noite escura

a pairar breves sobre a loucura.

Doem-me os olhos

gesto sem mão

nascem-me abrolhos no coração.

 

   Marilia  Gonçalves

 


 




lábios

 

Crepitava a noite por trás dos arbustos

vestida de folhas, de asas dormindo

trémula meu corpo nos teus braços justos

sonhava formoso as vestes abrindo.


Tuas mãos poisavam sobre a minha pele

voavam-te gestos,perfume de mar

tu! O meu amor. O único aquele

vindo d’entre vagas, olhos de luar.


Poisei os meus lábios no teu corpo inteiro

semeei meu sangue na força que é tua

a mágica noite, perfumava

meu corpo no teu, nas vozes da lua.



  Marilia  Gonçalves

 

 

 

 

sou eu que me respeito

 

Sou eu que acordo em mim cada manhã 

sou eu também que em mim própria adormeço

sou eu que vivo aqui

 para além

do vendaval do meu apreço

sou eu que me respeito, dilacero

sou eu de peito aberto, mas sincero

quem fecha ou abre a minha madrugada.

Sou eu que a rastejar pelos caminhos

me coroo de nuvens, de espinhos 

cambaleante entre ser tudo e nada.

 

 

  Marilia  Gonçalves