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quarta-feira, 22 de maio de 2024

templo das oferendas

 

Nunca pedirei

frases de amor

nem escritas nem faladas

eu trago em mim 

a fome e o pavor

do templo das oferendas recusadas.

 

 Marília Gonçalves


noite sombria, noite de ameaça

 

A casa de meus pais perdida há tanto

de risos e luar

de sol ardente

onde poisava meu olhar

contente

meu inocente olhar

alheio ao mal

que vem do sofrimento

meu terno e doce olhar

onde se via

sentir e pensamento...




Caíram noites sobre meu olhar

não noites como noites conhecidas

terríveis noites, noites sem sonhar

de monstros e de feras escondidas

noite sombria, noite de ameaça

onde todo o futuro se extinguia

Ó Noite do Terror que nunca passa

onde o nascer do dia não surgia


Foi uma longa noite repartida

por tudo o que é sensível e verdade

foi horrorífica noite repetida

que gela o tempo e todo o espaço invade


uma noite de séculos, milénios

que ali em meio século se vivia

que abocanhava a arte, alunos, génios

noite que cada dia renascia

que cegava a palavra

ardia livros

tentava prender o pensamento

essa tremenda noite de agonia

quando até o tempo era cinzento.

Mas nas dobras noite havia quem

alheio à realidade se escondia

e não via o pranto de ninguém

nem a terra e o luto que a cobria

foram tantos e tais esses vexames

tantas e tais afrontas se sofria

da negação  da dor e sofrimento

que em cada Humano mil astros implodiam

de ondulantes trigais à fome ao vento

e que em flâmulas a noite convertiam


caía aqui e ali um nosso  irmão

como um sol se desfaz no horizonte

à espera da partícula de pão

que se reparta a rir de monte em monte.





Por isso se ouviu d'opresso grito

brado puro que canta a Liberdade

num alerta que enchia o infinito

num ideal de Paz e igualdade.

 

Marília Gonçalves 







DESPERTAR DO 25 ABRIL DE 1974

 

DESPERTAR DO 25 ABRIL DE 1974
Naquela manhã idêntica a tantas outras, meu irmão saía de casa para ir para o Liceu. Despediu-se do pai que nesse momento começara a barbear-se. Deve como de costume ter-se despedido da avó e da mãe e começou a descer as escadas do 3° andar que o separavam da rua. Precisamente no momento em que agarrou a maçaneta da porta da rua, parou surpreendido e assustado. Um grito indescritível ecoava pelas escadas, batia contra as paredes com tal força que de imediato percebeu tratar-se de grito do pai!
Subiu as escadas de quatro em quatro, a uma velocidade a que o medo obrigava (nosso pai era muito doente e por vezes havia cenas semelhantes em casa que não anunciavam nada de bom e que acabavam muitas vezes na ida de nosso pai para o hospital).
A porta de casa abriu-se ao seu chamamento. Qual não é o espanto quando depara com um pai que exultava de alegria explosiva e comunicativa!
Ora o que se tinha passado era o seguinte: enquanto fazia a barba, meu pai de transístor aceso ouviu a transmissão da notícia de que em Portugal estava a dar-se um golpe de estado. Para quem sempre acreditara na possibilidade da queda do regime salazar/caetano, nunca lhe passou pela cabeça que o golpe viesse ainda de forças mais reacionárias, Para ele era límpido! O Golpe era de esquerda e era para libertar Portugal e seu povo. Para quem na altura se encontrava exilado desde 1962, era o concretizar do sonho, da espera de cada dia
E foi uma ronda de alegria infinda que encheu a casa
A mãe, eufórica até mais não, precipitou-se para o quiosque mais próximo onde foi comprando todos os jornais que surgiam; procurando notícias mais aprofundadas.
Eu em Faro, infelizmente, como meus pais não tinham telefone (nem todos os exilados políticos tiveram exílios dourados, como foi o caso de uns quantos) não podia comunicar com eles e partilhar assim o que apesar de pouco íamos obtendo de notícias vindas de Lisboa!
A minha avó materna, que já vira muito e muitas vezes se decepcionara com anúncios logrados da queda do regime, mantinha-se num estado de fleuma, aguardando confirmação e concretização do acontecido
Mas foram dias de exuberância e excitação, de preparativos para a vinda de meu pai a Portugal, que as dificuldades agravadas pela sua doença complicavam e assim so a 4 de Maio o recebemos em Lisboa onde chegou de camioneta. Família e amigos ostentavam cravos vermelhos e eu tinha uma espécie de xaile vermelho pelas costas que cruzava sobre o coração
Assim que as aulas acabaram chegou a família toda e foi o Verão de 1974 o reencontrar de uma vida repartida por todos e partilhada por amigos e povo que começava a colher as primeiras conquistas de Abril, que dia após dia se concretizavam!
Num país em que os Militares eram o nosso orgulho e que passavam a fazer parte da grande família portuguesa
Por toda essa inesquecível alegria, pela fraternidade, pelo nosso olhar límpido e seguro e por quanto de bom e humano Abril nos trouxe VIVA O 25 DE ABRIL DE 1974 PARA TODO O SEMPRE
e VIVA A VIDA que o 25 de Abril compensou de quanta agrura possamos ter vivido anteriormente
Marília Gonçalves
 
(nota- enquanto escrevi este breve texto, todos os que partiram e que choro, meu pai, minha avó minha tia ( a viúva de Alex, Alfredo Dinis, o meu avô preso 24 vezes que resistiu ao Tarrafal e tantos outros, estiveram aqui, presentes e vivos, tão vivos como o estavam no 25 de Abril de 1974, uma profunda alegria me acompanhou durante estes momentos de escrita!)

a

Olga Maria Mendes
Minha amiga, o 25 de Abril, em minha casa/ família próxima também foi de alegria e confiança num Portugal redescoberto com mais justiça e mais paz... Eu tinha 17 anos, fiz 18 anos no mês de junho seguinte.
Li o teu texto muito emocionada pela admiração que tenho por quantos e quantas sofreram o fascismo diretamente sem vacilar como aconteceu com a tua família ( podemos tratar-nos por "tu"?).
Nāo nos conhecemos pessoalmente, mas pelo que leio, pelo que sinto há amigos e amigas virtuais que parece que já conheço há muito tempo.
Um grande abraço.


  • Répondre
Silvina Fonseca Anadio Queiroz
Marilia Gonçalves Pimenta Gonçalves gostei muito do teu texto. Eu estava na universidade e corri de casa até lá, feita maluca! Um dia inesquecível!

Maria Helena Silva
Linda descrição do que foi o 25 Abril numa família portuguesa. Acho que posso dizer sem errar que na grande maioria das famílias esse dia foi dia de alegria. Tantos sonhos ...... que faltam realizar


Sim, vi dentro das grades da prisão da cadeia do Forte de Caxias, a partir daa 7:00 h, porque me encontrava no último piso em cela de isolamento o despertar de um dia Novo a da Liberdade no dia 26 de Abril onde progressivamente afliam às imediações da cadeia milhares de Portugueses a exigirem a nossa libertação... sim, olhei e vi os Fuzileiros do MFA a guardar a cadeia tendo substituido a GNR, alguns já com o cravo na G3... a libertação só foi conseguida por pressão do MFA e do Povo Português contra as intenções de Spínola que só queria que alguns presos no País fossem libertados.... finalmente em Caxias os portões da prisão se abriam às 0:00 h e em Peniche às 0:01 horas do dia 27 de Abril. Fascismo Nunca Mais! 25 Abril Sempre! A Luta Contínua nas Ruas no dia 25 de Fevereiro da CGTP.Maria Helena Silva
 
Eugénio Ruivo conheço bem a entrada e a sala das visitas, andei para lá a caminhar de 1962 a 1965 para ver o meu pai
 
 
Eugénio Ruivo
Maria Helena Silva como se chama o seu pai? Esse período corresponde a uma imensa vaga de prisões de antifascistas que lutando pela Liberdade, davam a sua vida como os que estavam na clandestinidade em qq uma das trincheiras de combate. Não podemos baixar a guarda. Muitas saudações e quão foi bonito o seu escrito de Liberdade. Fascismo Nunca Mais! 25 Abril Sempre!A Luta Contínua!
 

 

Orlando Adrião
Lindo texto amiga! Abril sempre.
 
 
Filomena Santos
Vinte e cinco de abril sempre fascismo nunca mais


Manuela Galhofo
Um grande xi❤️


Carmo Vicente
25 de Abril Sempre!
Catarina Aires
25 de Abril Sempre!

Negro bailado de Marilia Gonçalves

 

Negro bailado no país da era

onde fogo palpita voador

escultor do fim da Primavera

vinho rubro em corpo sem amor.

Lesto  negro eleva-se no trilho

de instante perene ou irreal

dedos vermelhos entrelaçam brilho

distanciar o vento sem igual.

 

De ilha abandonada, o apelo o mistério

folha que história abandonou

crepitar de som fulvo e etéreo

nevoeiro que a hora transformou.

 

Memória do olhar, a ansiedade

a bailar negro, estático parou.

Ouve-se ao longe uivar a tempestade...

mas foi dentro de nós que ela ecoou!

 

Marilia Gonçalves 

 


 

 


Poeta

 

Poeta

ser intermédio

entre poético

e poesia. 

 


  

FRATERNIDADE AUSENTE

 

Religiões sem esperanto

onde me espantam

as manhãs que teimam em nascer.

 

 


 


 

Pra quê Marilia Gonçalves

 

Para Quê

 

Pra quê falar de ti, se não mais tu

pra quê dizer agora, se não já

pra quê falar de mim sem coração

pra quê dizer sempre, se mais não?

 

Pra quê dizer connosco, se não nós

pra quê dizer juntos, se tão sós

pra quê dizer falarmos, se não voz?

 

Pra quê, pra quê, pra quê, se não é nada

se no sorriso começa cada história

para vir a ser silenciada.

 

Marilia Gonçalves