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terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Almeida Garret Os Cinco Sentidos

 

Os Cinco Sentidos

São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
      Em toda a natureza
      Não vejo outra beleza
      Senão a ti - a ti!

Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
      Não oiço a melodia,
      Nem sinto outra harmonia
      Senão a ti - a ti!

Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
      Não percebe, não toma
      Senão o doce aroma
      Que vem de ti - de ti!

Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
      Famintos meus desejos
      Estão... mas é de beijos,
      É só de ti - de ti!

Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
      Sentir outras carícias,
      Tocar noutras delícias
      Senão em ti! - em ti!

A ti! ai, a ti só os meus sentidos
      Todos num confundidos,
      Sentem, ouvem, respiram;
      Em ti, por ti deliram.
      Em ti a minha sorte,
      A minha vida em ti;
      E quando venha a morte,
      Será morrer por ti.

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'




 







Almeida Garret

Portugal
4 Fev 1799 // 9 Dez 1854
Escritor/Dramaturgo/Orador

Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias' (Dedicatória de introdução a «A Musa em Férias»)

 

(Dedicatória de introdução a «A Musa em Férias»)

Recordam-se vocês do bom tempo d'outrora,
Dum tempo que passou e que não volta mais,
Quando íamos a rir pela existência fora
Alegres como em Junho os bandos dos pardais?
C'roava-nos a fronte um diadema d'aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino Abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsâmina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
Não lançaram então perdidas pelo ar!...
Mil quimeras de glória e mil sonhos dispersos,
       Canções feitas sem versos,
E que nós nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e as esp'ranças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o Inverno chega à nossa alma,então
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida é um Sol que chega ao cúmulo
Quando cantam em nós essas canções celestes;
A sua aurora é o berço, e o seu ocaso é o túmulo
Ergue-se entre os rosais e expira entre os ciprestes.
Por isso, quando o Sol da vida já declina,
Mostrando-nos ao longe as sombras do poente,
É-nos doce parar na encosta da colina
E volver para trás o nosso olhar plangente,
Para trás, para trás, para os tempos remotos
Tão cheios de canções, tão cheios de embriaguez,
Porque, ai! a juventude é como a flor do lótus,
Que em cem anos floresce apenas uma vez.

E como o noivo triste a quem morreu a amante,
E que ao sepulcro vai com suas mãos piedosas
Sobre um amor eterno — o amor dum só instante —
Deixar uma saudade e uma c'roa de rosas;
Assim, amigos meus, eu vou sobre um tesouro,
Sobre o estreito caixão, pequenino, infantil,
Da nossa mocidade, — a cotovia d'ouro
Que nasceu e morreu numa manhã d'Abril! —
Desprender, desfolhar estas canções sem nexo,
Estas pobres canções, tão simples, tão banais,
Mas onde existe ainda um pálido reflexo
Do tempo que passou, e que não volta mais.

Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias'




 








António Ramos Rosa Mas agora estou no intervalo em que

 [Mas agora estou no intervalo em que]

Mas agora estou no intervalo em que
toda a sombra é fria e todo o sangue é pobre.
Escrevo para não viver sem espaço,
para que o corpo não morra na sombra fria.
Sou a pobreza ilimitada de uma página.
Sou um campo abandonado. A margem
sem respiração.

Mas o corpo jamais cessa, o corpo sabe
a ciência certa da navegação no espaço,
o corpo abre-se ao dia, circula no próprio dia,
o corpo pode vencer a fria sombra do dia.
Todas as palavras se iluminam
ao lume certo do corpo que se despe,
todas as palavras ficam nuas
na tua sombra ardente.

A Construção do Corpo, 1969

 



António Ramos Rosa

Eugénio de Andrade Os amantes sem dinheiro

 

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.
 
Eugénio de Andrade em 1998 - foto Alfredo Cunha
 
                                                            em 1998 - foto Alfredo Cunha
 

Hipérbole Teresa Veludo

 

Hipérbole
Sei que sou uma espécie de hipérbole,
amo demais, sofro demais, sou demasido
triste e sozinha,
sôfrega bebo a vida em tragos por vezes
amargos e doridos,
rios de que não sei o nome atravessam
o meu peito,
sinto em todos os meses o florido Maio
longínquo,
comovo-me com os versos de poetas
esquecidos,
escrevo linhas e linhas com estas mãos
que são minhas,
descubro nas insónias velhos amigos
perdidos,
falo com pássaros novos que me visitam
nas madrugadas,
clareio ideias na luz imperturbável do meio dia
vertical,
descanso na languidez musical das tardes
ensolaradas,
verto lágrimas e filosofia quando o dia parte,
lusco-fusco
que me desfoca imagens do passado,
memórias que permanecem tão vivas
como se o tempo não fosse outrora.
Sou assim uma espécie de hipérbole,
em construção
que não sabe nada de figuras de estilo.
 
Teresa Veludo 
 
Livro Azul Liquefeito
 
Yayoi Kusama
 

 
 

Juliette Gréco, le best of | Archive INA

 

 


 
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