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domingo, 29 de setembro de 2024

CONTO uma mulher meditava.






Sentada sobre tronco de velho castanheiro, uma mulher meditava. A tarde amena daquele outono tinha no cheiro a húmus todas as tonalidades da estação adiantada. Cogumelos de várias espécies davam ao chão a graça, o colorido de estampas antigas.

Brilhava-lhe o gosto contemplativo no olhar, mas na expressão, havia uma contrariedade que o aspecto grave da postura confirmava. Que contraste se adivinhava entre a observação da floresta e seu mundo interior.

Na quietude da floresta deixou escapar uma frase:

_como é difícil ser poeta!

Lembrou o poema de Florbela Espanca, ser poeta é ser maior...

Maior, mas maior que quê?

Maior, que a dimensão humana? talvez.

Porque havia de ser maior o poeta, que tudo o que o gerou. O ser humano atravessou a história milenar, seus sobressaltos e incertezas... que pode haver de maior que essa realidade. Talvez o sonho, o sonho humano seja maior. E quem se eleva mais no sonho que o poeta? Será isso ser maior? poderemos medir-nos com nossos sonhos, que eles sim são livres. Nossas peias humanas permitem-nos por acaso liberdade? Pobres rimadores à procura de sentido. De novo sua voz se fez ouvir:

_como é difícil ser poeta! Mas onde está afinal a dificuldade em sermos o que somos. Ser poeta, fazedor de rimas, ajuntador de palavras, à procura de sentido! Se ao menos ser poeta fosse assim simples, não teria por dentro aquela pontada aguda a exprimir o doloroso contrário: estar na posse de sentido à procura de palavras.

E se ainda ao menos fosse só isso. Mas não, ainda era preciso não desmerecer e sentido e palavras.

Na altura dos ramos aves cantavam.

_Que sorte vocês têm! Nascem, trazem o cantar por destino, sem metafísica alguma, sai-vos certinho o canto determinado desde avôs, nenhuma nota houve a mudar, vossas incansáveis harmonias perfumam-nos os ares infatigavelmente. Regras naturais que sempre encantam sem trazer reflexo de dúvida e angústia. Isto de nascer com consciência, sempre tem que se lhe diga.

A harmonia do poeta tem que começar por dentro, ou terá sido por acaso que o Rimbaud tenha deixado de escrever versos e se tenha tornado traficante de armas. Poeta nunca o poderia ter feito. Para passar ao estado mercantil, despiu a poesia de que estava vestido por dentro. Dinheiro e poesia nada têm em comum.

_Pobre homem pensou, depois do despudor da poesia, despir a alma de poeta.

E dizem que os poetas não passam de uns loucos, de líricos. Falam por falar, nada sabem do rigor a que a poesia impele.

Senão, ser poeta seria fácil. Dizem que se nasce poeta.

Como falariam de qualquer deficiência. Mas para que espontâneos versos brotem, é preciso que a idealidade conduza o poeta pela mão, alma de criança, dotada visão a agudizar-se sempre.



Marília Gonçalves

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