Sobressalto cívico contra
uma democracia ultrajada
André Freire
O que espanta é que, perante o monumental embuste político,
não haja um movimento geral de indignação
A Associação 25 de Abril
(A25A) recusou participar
nas comemorações ofi ciais
do 25 Abril, embora tenha
participado nas comemorações
populares. Também artífi ces
fundamentais da implantação
do regime demoliberal e
representativo, o antigo
Presidente da República (PR)
Mário Soares e o antigo deputado e vicepresidente
da AR (Assembleia da República)
Manuel Alegre juntaram-se-lhe no protesto.
Entre os argumentos da A25A está a ideia
de que “o contrato social estabelecido na
Constituição da República Portuguesa (CRP)
foi rompido pelo poder”. Será que o modelo
de democracia e de contrato social, vertidos
na CRP, estão em risco com esta governação?
Em primeiro lugar, é óbvio que princípios
fundamentais de uma democracia
representativa têm sido violados com a
ação deste governo. Numa democracia
representativa há duas funções essenciais
(das eleições): a representação e a
responsabilização. A representação assenta
num “contrato” entre os partidos, que
propõem aos eleitores determinados pacotes
de políticas públicas, e os eleitores, que
votam nos diferentes competidores tendo
em conta essas propostas. Basta ver o vídeo
que circula no YouTube, “Passos Coelho
(PPC) Best of 2010-2011”, para constatar que
estamos perante um monumental embuste
político. Aí se pode ouvir PPC, candidato,
em muitos casos já depois de conhecido o
acordo com a troika, a dizer que não cortará
salários, que não cortará subsídios, que
se tiver que subir impostos privilegiará os
impostos indiretos (IVA), que não acabará
com o IVA intermédio para a restauração,
que poupará as classes médias, que se
oporá a cortes nos benefícios fi scais (em
saúde e educação), que não quer liberalizar
os despedimentos… que nunca dirá que
só há um caminho… E note-se que muitos
dos compromissos violados, porventura
os mais gravosos, não decorrem do acordo
com a troika (cortes de salários, subsídios
e pensões), e contrariam os programas
eleitorais e de governo dos partidos
vencedores em 2011. Não é a primeira vez
que há compromissos eleitorais que são
violados, mas nesta extensão, com esta
gravidade e em tão pouco tempo, é uma
novidade absoluta. Mais grave: tudo isto
tem sido feito com o beneplácito do PS, e
as suas “abstenções violentas”, e do atual
Presidente da República. Acresce que
vários constitucionalistas de prestígio,
bem como um grupo de deputados que
pediu a fi scalização constitucional dos
cortes de subsídios, pensam que muitas
destas medidas representam entorses ao
Estado de direito e à CRP. Perante isto, a
ministra da Justiça não diz que cumprirá
escrupulosamente as orientações do TC,
quaisquer que elas sejam, como competiria
a quem tem a tutela do Estado de direito, diz
sim que se o TC chumbar os cortes “será o
colapso”, “porque não há outro caminho”.
Em segundo lugar, temos a escandalosa
dualidade de critérios (ver também texto
da A25A). De facto, para transformar o
Estado social num Estado assistencial, para
liberalizar os despedimentos (tornandoos
absurdamente fáceis e baratos), para
aumentar a carga de trabalho e reduzir
remunerações (num dos países da UE onde
já se trabalha mais horas e o pagamento
horário já é dos mais baixos), tem sido uma
urgência absoluta e uma vontade explícita
de ir muito além da troika. Pelo contrário,
e apesar das circunstâncias alegadamente
extraordinárias que explicariam a
necessidade de violar grosseiramente
compromissos eleitorais cruciais, noutros
domínios que tocam os privilégios do sector
privado que vive de principescas rendas
pagas pelo Estado, não só nada (ou muito
pouco) se faz, como os indícios apontam
para se querer fi car muito aquém da troika,
se é que se quer cumprir o memorandum:
“rendas excessivas” nas parcerias públicoprivadas
e no sector da energia; cortes nos
“consumos intermédios” (leia-se cortes
na externalização de funções do Estado
para escritórios de advogados e fi rmas de
consultoria); etc. Tudo isto demonstra que
não há só um caminho, e que o caminho
seguido resulta não tanto do acordo com a
troika como de um
programa ideológico
radical (da coligação
governamental) que
se esconde atrás do
memorandum.
Só por isto, o
sobressalto cívico
da A25A, de Soares
e de Alegre está
inteiramente
justifi cado. O
que espanta é
que, perante o
monumental
embuste político,
não haja um
movimento geral
de indignação
(dos cidadãos,
dos jornalistas,
da oposição, dos
cientistas sociais
e políticos, etc.),
antes uma apatia
geral. Espanta também, a contrario do que
se passa noutros países, a fraqueza dos novos
movimentos sociais e a sucessão de embriões
falhados de novos partidos, que têm
surgido como resposta à crise democrática
que vivemos e ao bloqueamento das
respostas sociopolíticas à mesma.
Politólogo, professor no ISCTE-IUL.
Escreve na primeira quarta-feira de cada
mês. andre.freire@meo.pt
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