Mário Crespo
A FOME, A CORRUPÇÃO E OS LUXOS...(Mário Crespo)
Portugal precisa de jactos executivos para transporte de governantes?

Pronto!
Finalmente descobrimos aquilo de que Portugal realmente precisa: uma
nova frota de jactos executivos para transporte de governantes. Afinal, o
que é preciso não são os 150 mil empregos que José Sócrates anda a
tentar esgravatar nos desertos em que Portugal se vai transformando.
Tão-pouco precisamos de leis claras que impeçam que propriedade pública
transite directamente para o sector privado sem passar pela Partida no
soturno jogo do Monopólio de pedintes e espoliadores em que Portugal se
tornou. Não precisamos de nada disso. Precisamos, diz-nos o
Presidente da República, de trocar de jactos porque aviões executivos
"assim" como aqueles que temos já não há "nem na Europa nem em África".
Cavaco Silva percebe, e obviamente gosta, de aviões executivos. Foi ele,
quando chefiava o seu segundo governo, quem comprou com fundos
comunitários a actual frota de Falcon em que os nossos governantes se
deslocam. Voei uma vez num jacto executivo. Em 1984 andei num avião
presidencial em Moçambique. Samora Machel, em cuja capital se morria à
fome, tinha, também, uma paixão por jactos privados que acabaria por lhe
ser fatal. Quando morreu a bordo de um deles tinha três na sua
frota. Um quadrimotor Ilyushin 62 de longo curso, versão presidencial, o
malogrado Antonov-6, e um lindíssimo bimotor a jacto British Aerospace
800B, novinho em folha.. Tive a sorte de ter sido nesse que voei com o
então Ministro dos Estrangeiros Jaime Gama numa viagem entre Maputo e
Cabora Bassa. Era uma aeronave fantástica. Um terço da cabina era uma
magnífica casa de banho. O resto era de um requinte de decoração
notável. Por exemplo, havia um pequeno armário onde se metia um
assistente de bordo magro, muito esguio que, num prodígio de
contorcionismo, fez surgir durante o voo minúsculos banquetes de tapas
variadíssimas, com sandes de beluga e rolinhos de salmão fumado que
deglutimos entre golinhos de Clicquot Ponsardin. Depois de nos mimar, como por magia, desaparecia no seu armário. Na altura fiz uma reportagem em que descrevi aquele luxo como "obsceno". Fiz
nesse trabalho a comparação com Portugal, que estava numa craveira de
desenvolvimento totalmente diferente da de Moçambique, e não tinha
jactos executivos do Estado para servir governantes. 
Nesta fase metade dos rendimentos dos portugueses está a ser retida por impostos. Encerram-se
maternidades, escolas e serviços de urgência. O Presidente da República
inaugura unidades de saúde privadas de luxo e aproveita para reiterar
um insuspeitado direito de todos os portugueses a um sistema público de
saúde. Numa altura destas, comprar jactos executivos é tão obsceno como o
foi nos dias de Samora Machel. Este irrealismo brutalizado com que os
nossos governantes eleitos afrontam a carência em que vivemos ultraja
quem no seu quotidiano comuta num transporte público apinhado, pela
Segunda Circular ou Camarate, para lhe ver passar por cima um jacto
executivo com governantes cujo dia a dia decorre a quilómetros das suas
dificuldades, entre tapas de caviar e rolinhos de salmão. Claro
que há alternativas que vão desde fretar aviões das companhias
nacionais até, pura e simplesmente, cingirem-se aos voos regulares.
 
Há
governantes de países em muito melhores condições que o fazem por uma
questão de pudor que a classe que dirige Portugal parece não ter.Vi
o majestático François Miterrand ir sempre a Washington na Air France.
Não é uma questão de soberania ter o melhor jacto executivo do Mundo. É
só falta de bom senso. E não venham com a história que é mesquinhez
falar disto. É de um pato-bravismo intolerável exigir ao país mais
sacrifícios para que os nossos governantes andem de jacto executivo. Nós
granjearíamos muito mais respeito internacional chegando a cimeiras em
voos de carreira do que a bordo de um qualquer prodígio tecnológico
caríssimo para o qual todo o Mundo sabe que não temos dinheiro.
Mário Crespo. Jornalista
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